A
Reinvenção do Uso da Ayahuasca nos Centros Urbanos
Comentário
de Maria Filomena Gregori
Professora de Antropologia do IFCH - Unicamp e Pesquisadora do Pagu -
Centro de Estudos de Gênero, Unicamp
Originalmente dissertação
de mestrado em Antropologia, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp, A reinvenção do uso da ayahuasca nos
centros urbanos recebeu o prêmio de melhor trabalho de mestrado
em Ciências Sociais, no ano de 2000, da ANPOCS (Associação
Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais).
O livro analisa os novos usos da ayahuasca, para entender as extensões
do universo ayahuasqueiro brasileiro, a partir da investigação
sobre a formação e a dinâmica de grupos que realizam
trabalhos, os mais diversificados possíveis, em conjunto com o
consumo desse psicoativo: técnicas de meditação oriental,
linhas variadas de terapia corporal e psicológica, assim como o
uso relacionado às modalidades de produção artística,
em particular, a pintura, o teatro e a música.
Essas novas modalidades de consumo da ayahuasca que constituem a prática
dos neo-ayahuasqueiros, fazem parte de uma rede urbana caracterizada pela
circulação intensa de informações, de conhecimentos,
de pessoas e de substâncias - fluxo que a autora examina com riqueza
de detalhes e ambição de análise. Ambição,
sobretudo, por estar abrindo um campo de pesquisa e por ser capaz de articular
temas estratégicos para entender a sociedade contemporânea.
O trabalho é bem-sucedido na maneira como relaciona uma certa dimensão
do universo religioso - mais precisamente aquela que aborda os processos
de re-significação de rituais e cosmologias de diferentes
orientações em novos contextos - com o uso de enteógenos,
com a prestação de serviços, no caso terapêuticos
e com a problemática do individualismo da alta modernidade, momento
em que os sujeitos travam relações sociais tão lábeis.
Se o mapa é extenso e repleto de reentrâncias, o estudo não
se perde, nem se dilui no fluxo: a descrição é montada
a partir de um grupo liderado pelo terapeuta holístico Janderson,
que coordena um Centro Terapêutico e uma atividade estritamente
relacionada ao consumo da ayahuasca, o Caminho do Coração.
As tramas e conexões desse grupo com o campo ayahuasqueiro brasileiro
vão sendo decifradas com acuidade, desde o esforço da análise
das trajetórias biográficas das lideranças envolvidas
e da história "institucional" do grupo, passando pelos
rituais com o daime, até chegar ao modo como diferentes cosmologias
configuram as suas práticas (o Daime, a psicologia, a "Nova
Era" e os orientalismos diversos). Por fim, a autora apresenta um
panorama de outras tendências ayahuasqueiras urbanas de forma a
situar, não apenas o grupo investigado, mas o quadro mais extenso
do que chama de neo-ayahuasqueiros.
O interesse deste livro, contudo, não se limita à sua rica
etnografia. Em primeiro lugar, chama atenção o esforço
analítico em articular os novos usos urbanos da ayahuasca, a Nova
Era e outras cosmologias e diferentes técnicas terapêuticas
a aspectos da modernidade, principalmente, essa tendência do indivíduo
contemporâneo cujo self se torna um projeto reflexivo. Em segundo
lugar, é inovador o modo como a autora vai expondo com clareza
a sua posição, ao mesmo tempo pessoal e profissional como
antropóloga, a partir da experiência vivida e que rende reflexões
sobre alguns dos atuais dilemas ou desafios da Antropologia no que se
refere à relação entre sujeito e objeto de investigação
e sobre a pretensa neutralidade da posição do observador.
Beatriz Labate assume a posição de autora e assume o lugar
que ocupa como um lugar potencialmente rico - por se tratar justamente
desse espaço "entre", que torna possível a tradução
ou mediação cultural. Entenda-se, nas suas próprias
palavras: "tradução compreende justamente a comunicação
de outras maneiras de entender as coisas a respeito do mundo, que não
privilegia uma racionalidade que está de acordo com o esquema de
realidade e razão do racionalista/observador". Ela evita incorrer
nos riscos do intelectualismo também porque está enfrentando
um objeto que tem como uma das vias de investigação a participação
em rituais com uso de uma planta que altera radicalmente a percepção
do real. A própria observação está imersa
em uma experiência que põe em questão as rígidas
fronteiras da racionalidade ou da consciência objetivadora. Mesmo
ponderando que a adesão não traz nenhuma garantia de qualidade
de pesquisa, a autora sugere que o consumo da ayahuasca pode modificar
a natureza da etnografia, colocando-se, inclusive, na posição
de antropóloga ayahuasqueira.
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Bia
Labate
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