Silva Sá, Domingos Bernardo G. "Ayahuasca, a
consciência da expansão.
Discursos sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro, Instituto
Carioca de Crimiologia. Ano 1, nº 2, 2º sem. 1996, pp. 145-174.
Ayahuasca
A consciência da expansão
DOMINGOS BERNARDO GIALLUISI DA SILVA SÁ
O
presente trabalho resulta dos pareceres que apresentei ao conselho Federal de
Entorpecentes – CONFEN, sobre o uso da bebida denominada ayahuasca,
vulgarizada, no Brasil, com os nomes de “Daime” ou “Santo Daime” e “Vegetal”.
Há
mais de dez anos o CONFEN acompanha sem adotar orientação proibicionista a
utilização da ayahuasca por diversas comunidades que, somados todos os
integrantes das várias entidades usuárias, em todo o território nacional,
talvez chegue a, no máximo, dez mil.
Meu
propósito, aqui, é avaliar esse acompanhamento governamental, não policialesco,
ao cabo de uma década, para aproveitar essa experiência pioneira, seja para
adotá-la, em algum nível, ou modificá-la, na formulação de políticas públicas,
dirigidas ao bom equacionamento da questão das drogas, em geral, guardadas as
peculiaridades das múltiplas situações que o tema oferece. Assim, o objetivo
deste trabalho não é fazer, simplesmente, uma análise química ou farmacológica
da ayahuasca, até porque também, não é meu campo específico de conhecimento.
Quando precisei abordar esses temas, por ocasião dos estudos necessários à
elaboração dos pareceres antes
referidos, recorri a eminentes professores e especialistas naquelas
áreas do saber científico.
Desde
logo afirmo a plena convicção de que a equação custo x benefício, em matéria de
drogas, é, essencialmente, cultural ou de outra forma, como seria explicável,
sob a ótica, exclusivamente, médica ou farmacológica, por exemplo, a plena
assimilação do uso de álcool e tabaco em nossa sociedade? Demais, como
compreender os “riscos a saúde ou segurança dos consumidores”, admitidos pelo
próprio “Código do Consumidor”, quando “considerados normais e previsíveis em
decorrência de sua natureza e fruição” (art.8º)?
É
indispensável esclarecer, entretanto, que a ayahuasca, resultante da decocção
do cipó amazônico, em conjunto com a folha, que têm nomes científicos,
respectivamente, de “Banisteriopsis Caapi” e “ Psychotria Viridis”, inclui-se,
cientificamente na classificação das drogas, tendo a atuação farmacológica,
como elemento diferenciador, entre os alucinógenos.
Portanto,
na realidade vamos tratar do uso de uma substância que sob a ótica exclusivamente técnica, é classificada
como alucinogênica. Creio que esse é o ponto mais instigante que pretendo
abordar no curso deste trabalho: a classificação estritamente química ou
farmacológica de uma substância, como alucinógena, exaure toda a questão,
quanto à viabilidade de aceitação ou não de seu uso? E o que é alucinógeno? O
que é alucinação?
A
Ayahuasca no Brasil
O
uso da ayahuasca é, de alguma forma, sempre ritual. No Brasil, ele se divide em
duas vertentes principais: a do “Santo Daime” e a da “União do Vegetal”.
A
União do Vegetal, também chamada, simplesmente UDV, tem características
diferentes, em muitos pontos, das comunidades do “Santo Daime”, embora guarde
identidade com aquelas, no que é essencial: o uso da mesma bebida. Trata-se de
centro espírita que, portanto, utiliza a ayahuasca. Entretanto, a UDV tem outro
mestre, que não Raimundo Irineu Serra (o “General Juramidã”, dos seguidores da
“Doutrina do Santo Daime”, que a criou”) A União do Vegetal reporta-se a José
Gabriel da Costa como seu mestre fundador, em Porto Velho, em 22 de julho de
1961.
A
UDV, em 1992, informava contar com “quase cinco mil sócios em todo
Brasil”. E essa é a entidade que
congrega maior número de centros usuários da ayahuasca, entre o que denominam
como “Núcleos, Pré-Núcleos e
Distribuições Autorizadas de Vegetal.”
A
outra vertente – o Santo Daime – tem como a comunidade mais numerosa, a
existente no estado do Amazonas, Município de Pauini, denominada Céu do Mapiá,
à época com, aproximadamente, 450 pessoas. Somado esse número a todos os demais
centros vinculados às diversas denominações que adotam o “Daime” ( Ciclu-I,
Ciclu-II, Ceflurius, Centro Espírita e Culto de Oração Jesus Fonte de Luz,
Centro Espírita Daniel Pereira de Matos e Centro Espírita Fé, Luz, Amor e
Caridade – Terreiro de Maria Bahiana), o total provável, segundo depoimentos
tomados, deve alcançar, no máximo, 1800 associados, o que indica o universo de
praticantes de cultos com o uso de ayahuasca, em todo território nacional, ao
redor de 6800 pessoas.
Alguns
dos Centros usuários da ayahuasca estão próximos de setenta anos de existência,
como se conclui de trabalho publicado por Clodomir Monteiro (1): “ o Alto Santo
surge no dia 26 de março de 1931, organizado por Irineu Serra, José Neves ,
acreano de Xapuri e os remanscentes de Brasiléia. Oficializa-se em 21 de maio
de 1962, como centro esotérico e em 23 de Dezembro de 1971 se separa do Círculo
Esotérico Comunhão de Pensamento, de São Paulo e se transforma no Centro de
Iluminação Cristã Luz Universal. A colônia onde se localiza a sede do culto,
foi organizada em terras cedidas pelo então Governador Guiomard Santos. Não
longe dali, em 1942, Daniel Pereira de Matos, aconselhado por Irineu, tem sua
própria “visão de iniciação”, organizando o Centro de Vila Ivonete”.
É
essencial atentar, portanto, para o fato de que o uso ritual da ayahuasca não é
um modismo ou uma novidade passageira que excita, tantas vezes, as intervenções
pessoais e, frequentemente, irresponsáveis dos que detêm, transitoriamente o
poder. A atuação irrefletida e desastrada dos poderosos de hora geram a
revolta, a violência e o caos.
A
propósito, é oportuno verificar o que diz o antropólogo e professor Edward
Mcrae(2), cujos estudos sobre o tema foram valiosíssimos à época da elaboração
do ultimo parecer que encaminhei ao CONFEN: “Quanto ao interesse cultural da
ayahuasca ter um uso ritual urbano no Brasil há quase 70 anos, lembra-se que
esse é aproximadamente o mesmo tempo de existência da umbanda e que, assim como
no caso dela, o uso religioso do chá psicoativo ensejou a criação de instituições
que provêem muitas pessoas com os arcabouços éticos, sociais e culturais, em
torno dos quais construíram suas vidas.
Os
diversos estudos antropológicos e históricos realizados sobre esse uso da
bebida tem ressaltado a conduta pacifica e ordeira dos adeptos das diversas
seitas, cujos valores básicos coincidem com aqueles considerados emblemáticos
das sociedades cristãs ocidentais. Longe de levar a um uso abusivo e destrutivo
de substâncias psicoativas, a tendência mais notada é a de promover estilos de vida
recatados e austeros, voltados para o culto, à espiritualidade e aos valores
familistas e comunitaristas”.
O
pleno engajamento familiar, social e político da população urbana acreana é
indisputável, a começar pelo exemplo do antológico e festejado Raimundo Irineu
Serra. O centro “Alto Santo” forneceu-me dois documentos que demonstram não só
as atividades do Mestre Irineu, como o reconhecimento, pelas mais altas
autoridades políticas locais, de seu valor.
O
primeiro revela o trato cordial e a confiança com que o Governador Delegado da
União no Acre – Major José Guiomard Santos – distingue Irineu Serra, a quem
solicita o adiantamento de madeira e gêneros em favor de Francisco Gabriel
Ferreira, em janeiro de 1948, quando o Mestre Irineu já tinha de prática ritual
com ayahuasca, somente em Rio Branco, dezessete anos.
O
outro documento encaminha a nomeação de Raimundo Irineu Serra “para exercer as
funções de fiscal florestal” no famoso “Seringal Empresa “, em dezembro de
1950.
Por
último o Centro de Vila Ivonete, referido por Clodomir Monteiro, organizado por
Daniel Pereira de Matos, em 1942, há mais de meio século, portanto, tem hoje,
no mesmo local, instalado o Centro Espírita “ Casa de Jesus – Fonte de Luz “,
dirigido por um dos dois sucessores de Daniel Pereira de Matos – Manoel
Hipólito de Araújo que participou da fundação desse centro em 1945 e que celebrou convênio com a
Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Acre em julho de 1991, para a
manutenção da Escola São Francisco de Assis, integrada ao referido Centro
Espírita.
A antropóloga,
pesquisadora do Museu Histórico Nacional e professora de antropologia da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Regina Abreu, faz considerações
quanto às características básicas, doutrinárias e rituais encontradas na
comunidade do “ Padrinho Sebastião “ ( atualmente no seringal “ Céu do Mapiá “,
no interior da selva amazônica) líder supremo da “doutrina”, termo pelo qual os
seguidores do “Santo Daime” designam toda sua peculiar liturgia que vai da
colheita das espécies vegetais, passa pelo preparo do chá (“feitio”), até as
sessões (“trabalhos”) em que são entoadas orações e hinos (núcleo da doutrina),
de acordo com calendário coincidente, em sua maior parte, com as datas
litúrgico-cristãs. Tais características básicas, entretanto, são encontradas,
também, em plena zona sul da cidade do Rio de Janeiro, além de outras “Igrejas”
e núcleos espalhados por todo o Brasil e alguns no exterior ( Espanha, Holanda,
Japão, EUA etc).
Diz
a professora Regina Abreu: “O Padrinho e a Madrinha são respeitados por todos e
reconhecidos como o Pai e a Mãe da comunidade, representando na terra o Pai a
Mães espirituais... Em termos gerais, o que parece importar é o grupo, o todo,
a comunidade, mais que os indivíduos ou os núcleos familiares isolados. Neste
sentido, a comunidade do Santo Daime aproxima-se do modelo de sociedade
descrito pelo antropólogo francês Louis Dumont como “holista”.
No
plano do astral, do espiritual, “a base principal é o Daime, diz o filho mais
velho do padrinho, designado por ele para ser o futuro líder e que já assume a
administração da comunidade – porque o Daime é o Mestre. Nos trabalhos de cura
é só o doente chegar e falar com o chefe, já o Mestre está sabendo o que vai
acontecer”.
O
Mestre é Juramidã, comandante de todo o movimento do universo, entidade
espiritual identificada com Jesus Cristo e o Pai Eterno ( o Deus Pai dos
Cristãos). ‘ Na espiritualidade, o Daime toma o nome de Juramidã – continua ele
– o Daime é a bebida, mas na bebida tem o ser divino que vem da floresta(...) A
presença do Daime é a presença do Cristo”(3).
A
demonstração da transcedental importância do “Padrinho Sebastião” para a
“Doutrina do Santo Daime” pode ser avaliada pelo fato de que nenhuma “Igreja”
tinha legitimidade para funcionar no Brasil ou, mesmo, no exterior sem que o
interessado, fosse pessoalmente, ao Seringal “ Céu do Mapiá”, na selva
amazônica e lá obtenha a autorização direta do “Padrinho”.
Ainda
alguns breves informes(4) sobre o “Padrinho Sebastião” e o “Seringal Céu do
Mapiá”. Esses informes são extraídos do livro “Historia do povo de Juramidam”,
de Vera Fróes.
“Sebastião
Mota de Melo nasceu em Eirunepé, Estado do Amazonas, no dia 7 de outubro de
1920. Desde 1975 é chamado pelos integrantes da comunidade rural da doutrina do
Santo Daime de “Padrinho”, palavra que expressa respeito e reconhecimento das
suas qualidades de mestre espiritual, além de colocar a pessoa que assim o
chama na condição de seu “afilhado” e protegido, que vai ser conduzido
espiritualmente.
Padrinho
Sebastião relata que desde o seu nascimento vivia com problemas de saúde e
quando criança ouvia vozes do mundo espiritual, tinha visões e sonhos que
revelavam fatos ainda por acontecer. Com a idade de oito anos teve um sonho que
interpreta como um sinal da missão que iria cumprir anos mais tarde, com o
Santo Daime:
“Eu
estava só no meio das matas, de chapéu de massa na cabeça e uma roupa parda, aí
começou o fogo e vinha aquela zoada medonha e vi a lingüeta de fogo que
arrodeou tudo, queimou tudo, não ficou nada, só ficou este lugar que eu
estava... A minha vida de quinze anos em diante, lá no Amazonas, era ver visão:
da água, da mata e do astral, mas, nada daquilo eu compreendia e tudo era como
se fosse um sonho... Eu não ligava para aquilo, fazia como um teimoso, mas
acontecia e logo eu via o resultado. Foi indo e eu comecei a voar. Voando e
vendo como é o astral eu entrava na floresta, nas águas e de conformidade eu
via as visões. Com o tempo eu comecei a trabalhar com espiritismo que se manifestou
e uma voz começou a me chamar: - Bastião! E eu respondia: - Oi,ôpa ! Aí a luz
apagava e a voz não continuava. Mas algum tempo passou e eu peguei um avião
astral e cheguei no Acre. Não demorou muito, eu vim, via materialmente”.
Para
o padrinho existe uma diferença entre sonho, miração e visão, sendo muito
improtante para um curandeiro saber diferenciar esses fenômenos:
‘Não
vá pensar que miração é sonho e nem que visão seja miração. A miração você fica
em dúvida, viu mas não viu, e quando é visão, você fica como se fosse um sonho
mas não é, é a verdade, você está vendo tudo, tá ouvindo tudo e percebendo. O
sonho é mais atrapalhado, o camarada sai aos emboléu, pega um caminhozinho
apertado e lá vai, mas quando acorda não tem a consciência. Na visão você fica
com a consciência segura, nunca mais larga...’
Assim
como mestre Irineu, Padrinho Sebastião teve sua iniciação orientada por um
xamã, o mestre Osvaldo, um negro nascido em São Paulo, chamado também de
‘cumpade Osvaldo’, por ser padrinho do seu filho, Pedro Mota.
Durante
um ano nas matas do rio Juruá, o padrinho Sebastião aprendeu com mestre Osvaldo
a realizar trabalhos com banca espírita, mesa e atuação, recebendo o médium
cirurgião Dr. Bezerra de Menezes. Conforme o caso das pessoas que chegavam
doentes para o mestre Osvaldo, ele despachava para o padrinho Sebastião fazer a
cura.”
O
“Céu do Mapiá” é, hoje, a sede do Centro Eclético de Fluente Luz Universal
Raimundo Irineu Serra – CEFLURIS que, anteriormente, foi sediado na “Colônia
Cinco Mil”, situada no quilometro nove da estrada de Porto Acre. O nome “Cinco
Mil” deve-se ao fato de que “com a desativação do Seringal Empresa, a terra foi
loteada em colônias e vendidas a cinco mil cruzeiros antigos, cada uma(5).
Depois,
o Padrinho Sebastião e “seu povo”, como é chamada a comunidade que o tem como
líder espiritual, mudaram-se para o “ Seringal Rio do Ouro”, na região do rio
Endimari, nas margens do igarapé Trena. Narra, então, Vera Fróes:
“Para
surpresa de todos, o padrinho anunciou em 1981 que aquele ainda não era o local
determinado pelo astral e onde se ergueria a Nova Jerusalém. Concomitantemente
surgiram pressões de pessoas interessadas nas terras desbravadas pela
comunidade, sendo descoberto um titulo de propriedade com muitas irregularidades,
ainda do início do século e que dava a área como propriedade de um fazendeiro
sulista.
Apesar
da própria representação do Incra na região ter dado autorização para a
comunidade instalar-se no seringal Rio do Ouro, o órgão informou para a comunidade
a existência de outra área arrecadada pela União e sem proprietários, onde eles
poderiam se mudar, localizada no igarapé Mapiá, afluente do Rio Purus, no
Municipio de Pauini(AM), distante cerca de 150 quilômetros do seringal Rio do
Ouro.
Enfrentando
uma vez mais, inúmeras dificuldades e deixando para trás um seringal com muitas
benfeitorias que haviam construído, em plena capacidade produtiva de borracha e
agrícola e sem receberem nenhuma indenização dos alegados proprietários da
terra, a comunidade iniciou novo movimento em direção ao igarapé Mapiá visando
a implantação de um novo seringal – Céu do Mapiá.
A mudança da comunidade rural da Colônia
Cinco Mil para o interior da floresta amazônica possui um significado no plano
material e espiritual: o Daime protegerá os seus filhos – os Midã – que
atenderem ao chamado de retorno às origens, aos seringais onde muitos nasceram
e se criaram. É também uma volta à época que o mestre Irineu trabalhou nas
matas cortando seringa e conheceu o Daime.”(6)
Vale
a pena fazer um paralelo entre o processo de legitimação do uso ritual da
ayahuasca, em curso nos dias de hoje, com o que aconteceu com os cultos
afro-brasileiros, vítimas de dura repressão policial no início do século, como
foi o caso do “terreiro do Gantois”, de “Mãe Menininha”, que somente pôde
afastar a repressão policial, a partir da aliança que fez com os
intelectuais da época.(7)
A
História se repete, obviamente com diferenças de forma relativamente às duas
comunidades, a do Santo Daime e a da União do Vegetal. Ambas, porém, exaltam,
com toda ênfase, a plenitude de conteúdo simbólico de seus rituais, hábeis,
para seus fiéis, por isso mesmo, a viabilizar o reencontro deles consigo
mesmos, com o outro e com Deus.
E
um dado extremamente importante: a expressão histórica desses cultos está
intimamente ligada a “uma determinada cultura”- a brasileira. Mais que isso, ao
índio, ao caboclo, à Amazônia.
A
União do Vegetal vem confirmar com perfeita clareza o que ficou dito acima, no
seguinte trecho do livro que publicou como seu “primeiro documento oficial”(8):
“A
União do Vegetal, hoje em processo de expansão e institucionalização, já dispõe
de sólida presença nos meios urbanos, tendo, em seus quadros de sócios,
profissionais de ramos diversos – inclusive conceituados intelectuais e
cientistas.
Preserva
e cultua, entretanto, sua origem cabocla, que traduz a pureza de seus ensinos e
mantém sempre viva a lembrança de uma realidade: a de que grau espiritual nem
sempre tem relação com erudição ou títulos acadêmicos.”
A
comunidade do Santo Daime, da mesma forma, conta entre seus seguidores que lá
ainda estão ou por lá passaram, com intelectuais e artistas famosos que,
igualmente, exaltam o reencontro com a natureza e com o primitivo. Exemplo
disso, colhe-se no depoimento prestado pelo já falecido ator Carlos Augusto
Strazzer, publicado na revista Manchete, quando se referiu à floresta, ao
“ritual tão antigo quanto a América do Sul”, acrescentando haver descoberto “um
caminho de aprimoramento interno brasileiríssimo“. E arremata com destaque e
paixão: ”pela primeira vez, um ritual com música, dança e letras me fez sentir
completamente integrado ao meu país, à minha cultura e, por extensão, me
permitiu compreender todo o planeta. Me gratificou saber ainda que é a floresta
amazônica que nos dá tudo isso”(9).
É
bom lembrar, aqui, a advertência de McRae, no sentido de que “o uso da
ayahuasca tem sido considerado legítimo até agora, e que um grande número de
pessoas investiram suas vidas nesses cultos, tornando-os centrais para as suas
identidades sociais, individuais e espirituais.
“A história da
humanidade é pródiga em exemplos da insensatez que é a intolerância e a
perseguição religiosa, cujos principais efeitos parecem ser a exacerbação do
fanatismo de uns e da prepotência arbitrária de outros. “E após sinalizar que,
no Brasil ”a repressão aos cultos afro-brasileiros causou sérios problemas
sociais”, como exemplifiquei acima, com o “terreiro do Gantois”,
acrescenta McRae que “ a própria
tradição cristã é rica em modelos de martírio pela fé, que poderiam servir de
exemplo para os adeptos das seitas ayahuasqueiras em seus protestos contra a
proscrição de seus rituais. Levando-se em conta a importância dos aspectos
socialmente integradores dessas seitas, tem-se como corolário que o seu
enfraquecimento somente contribuiria para a debilitação da coesão social,
suscitando sentimentos de revolta e devolvendo à anomia muitos daqueles que
encontram nesses cultos o significado para suas vidas.”(10)
A
UDV, buscou seu processo de institucionalização a partir, inclusive do
aparelhamento administrativo da entidade. São exemplos desse processo: as
publicações “Consolidação das Leis da UDV” e “União do Vegetal – HOASCA –
Fundamentos e Objetivos”; a organização de um Centro de Memória e documentação,
responsável pela edição do jornal da sociedade, denominado ”Alto Falante”; a
organização, também, de um Centro de Estudos Médicos, sob cuja responsabilidade
foram promovidos três congressos, sendo o último realizado no Rio de Janeiro,
simultaneamente com a Conferência Internacional de Estudos da Hoasca.
Ainda, a UDV implementa projeto extrativista e de
cultivo de plantas medicinais no Seringal Novo Encanto, situado no Acre, para o
que fundaram a Associação Novo Encanto de Desenvolvimento Ecológico.
A
vertente do Santo Daime, guardadas as suas características próprias e com maior
tendência à vida em comunidade, buscou, igualmente, a sua institucionalização,
especialmente o ramo CEFLURIS, que congrega o maior número de adeptos da
vertente Santo Daime – em torno de 1000.
Foi
criado, assim, o CEFLURIS NACIONAL com sede no Céu do Mapiá. Tem, entre outros
objetivos, a regulamentação da fundação de novos centros e a unidade ritual.
O
CEFLURIS investiu seus esforços, firmemente, no projeto ambientalista
viabilizado com a criação, por decreto presidencial (nº 98.051, de 14.8.1989),
da Floresta Nacional Mapiá-Inauini, de 311 mil hectares.
Foi
organizada a Associação dos Moradores da Vila Céu do Mapiá, que firmou convênio
com o IBAMA, em agosto de 1989, com o objetivo de mútua colaboração das partes,
com vistas à proteção dos recursos naturais nas áreas de Floresta Nacional
criada.
Foi
constituída a Cooperativa Extrativista da Amazônia – a COPEAMA – cujos
fundadores são todos residentes na Vila Céu do Mapiá e que tem entre seus
principais objetivos a implantação do projeto de desenvolvimento sustentável na
área das florestas nacionais do Mapiá-Inauini, no Estado do Amazonas.
O
Uso Ritual da Ayahuasca
O
rito é meio, é instrumento. As regras que o integram devem servir a quem o
adote para alcançar o objetivo colimado.
Os
rituais religiosos pretendem ser, sempre, veículos, meios de comunicação da
pessoa humana com o Absoluto, com o Astral, com Deus ou que outro nome tenha
essa Realidade transcendente que o ser humano, ordinariamente, não percebe,
especialmente em nossa civilização contemporânea e ocidental.
O
ritual religioso inclui a idéia de limitação, ou ordenamento do aquém para
viabilizar o ir além. Daí a sua importância como disciplina e, ao mesmo tempo,
como gerador de força. Assim como as águas do rio, que só produzem energia
quando represadas. É o preço pago para gerar a luz.
Para
uma serena avaliação da importância do uso ritual da ayahuasca, é imperativo
fazer uma reflexão prévia sobre as liturgias contemporâneas, praticadas,
especialmente, em nosso mundo ocidental.
O
ritual não se justifica pelo ritual, mas na medida em que esteja prenhe de
conteúdo simbólico, ou de outra forma, se constituirá em práticas massificantes,
em repetições mecânicas, frustrantes e alienadas.
O
significado do símbolo vamos colher na cultura grega. Uma pessoa que hospedara
outra, ao despedir-se dessa última, partia em dois um determinado objeto.
Guardava uma parte e entregava outra àquele a quem dispensara a boa acolhida.
Passado o tempo, um dia, quando os herdeiros de qualquer dos dois encontrassem,
aquelas partes, ao se reunirem, harmonizando-se uma com a outra, recompondo o
todo, daria a conhecer um pacto de amizade que se estabelecera entre seus
antepassados. O reencontro daquelas partes passava a construir testemunho, um
sacramento da hospitalidade havida.
O símbolo é,
portanto, e necessariamente unitivo. Busca superar a divisão para recuperar o
todo, com a reunião das porções separadas.
Ora,
vive-se uma crise evidente e generalizada do conteúdo simbólico dos diversos
rituais adotados em nossa sociedade (quando se chega a participar de algum).
Por ocasião dos fatos que se integram o ciclo humano, como o nascimento, o
casamento e a morte. Esses rituais, normalmente, são ocos e, na maioria das
vezes, intelectualizados, repetitivos e muito distantes de nossa linguagem e
raízes culturais.
Afirma,
com toda razão Leonardo Boff: “quando se realiza o simbólico, os ritos
sagrados, os momentos fortes da vida tornam veículos misteriosos, da presença
da graça divina. Caso contrário, transformam-se em meras cerimônias vazias e
mecânicas, no fundo ridículas.” (11) E ressalta a importância de ver-se a
religião como “complexo simbólico que exprime e alimenta permanentemente a fé
dentro das possibilidades de uma determinada cultura”(12).
É
exatamente numa época de vacuidade e insignificação, de exasperado consumismo,
que surge, como objeto de interesse dos grandes centros urbanos, o uso ritual
da ayahuasca, introduzido, entretanto, no interior do Brasil, desde o início
deste século.
Importa
frisar, portanto, que a bebida é, igualmente, meio, é veículo, não é um fim. A UDV afirma em seu livro
que “não vê o chá como um fim em si mesmo, mas como um veículo para uma
caminhada que exige sacrifícios e renúncias...”(13)
Entretanto,
embora não seja um fim em si mesmo, a ayahuasca é condição de grande
importância para a existência das comunidades que a usam, como instrumento de
consecução de seus objetivos espirituais. Sem essas espécies vegetais,
provavelmente não subsistiriam essas formas de expressão religiosa.
Há
grande semelhança ritual entre os diversos centros que integram a vertente do
“Santo Daime”.
Os
homens vestem terno branco e friso verde na calça, com gravata da mesma cor e
alguns levam na lapela um círculo, contendo uma estrela e, no seu interior, uma
lua, tudo em dourado. As mulheres usam vestido branco, cingidas de verde, tendo
à cabeça um ornato, como pequena grinalda. A essas vestimentas dão o nome de
“farda”, recebidas somente pelos que optaram pela “doutrina”. O ambiente das
“igrejas” do “Santo Daime” é muito semelhante ao que se pode encontrar em
templos de outras confissões religiosas: velas, cruzes, rosários, efígies da
virgem Maria, Jesus Cristo e São João Batista. Ao fundo do templo encontra-se
um compartimento isolado, em que fica guardado o “Daime”, sendo interessante
observar que a comunicação com o salão, em que se desenvolve a cerimônia,
faz-se através de duas aberturas em forma de sacrário.
As
cerimônias duram de seis a doze horas, de acordo com o tipo de “trabalho” a ser
realizado. Inicia-se com a recitação de orações cristãs, mais especificamente,
o “Pai-Nosso”, o “Terço”, a “Salve-Rainha”, além de jaculatórias. A seguir,
então, os homens e as mulheres, compondo grupos separados, colocada entre eles
uma mesa com velas, cruzes, água, cristal de pedra e rosários, formam duas
filas e dirigem-se aos dois “sacrários” (um para as mulheres, outro para os
homens). Em cada um deles é servido o “Santo Daime” em quantidade equivalente a
100ml ou 150ml, a cada participante que, antes de receber sua porção, faz o
“Sinal da Cruz”, contritamente, voltando ao seu lugar. Hinos são entoados e
estão presentes durante todo o “trabalho”, com o acompanhamento de instrumentos
como o violão e acordeão, ao compasso dos maracás. Os dois grupos – de homens e
mulheres – bailam, com movimentos laterais, repetidos, uniformes e alternados.
São encaradas com naturalidade as ocorrências de vômitos e diarréias (essa
última parece menos freqüente). Tais fatos são considerados como formas de
purificação dos males do espírito e do corpo. O participante que esteja nestas
condições é sempre assistido por membros da comunidade que durante todo o
“trabalho”, tem esta missão de amparar aqueles que estiverem expiando suas
mazelas. A “igreja” está situada em local que, necessariamente, prevê as
condições indispensáveis para possibilitar este verdadeiro ”rito de expiação”
(através do vômito ou da diarréia, ou de ambos, cumulativamente). Pode-se
dizer, portanto, que a realização de um “trabalho” não deixa de integrar em sua
previsão, o “rito de expiação“, com espaços e lugares que possibilitem as
purgações do possível participante sofredor. Os hinos evocam as forças da natureza,
o poder de Deus, da Virgem Maria e de todos os santos. Enaltecem as virtudes
humanas, exortam os homens ao amor, à humildade e ao arrependimento de suas
faltas; proclamam a alegria e a força dos que têm fé no poder divino e praticam
o bem. Há pequenos intervalos entre os hinos, durante os quais são recitadas
jaculatórias, dados vivas, entre outros, ao “Divino Pai Eterno”, aos autores
dos hinários e aos visitantes. A bebida é servida por mais duas vezes, segundo
o mesmo ritual (filas de homens e, separadamente, de mulheres, “sacrários”
diferentes, ingestão respeitosa), de
forma semelhante às filas para o recebimento da comunhão, entre os católicos.
Na última vez, os participantes do “trabalho” tomam quantidade menor de
“daime”, com o objetivo de encerrar as experiências contemplativas e retornar,
assim, o ritmo ordinário da vida. O “trabalho” é formalmente encerrado com a
recitação de orações e com agradecimentos a Deus. Após o encerramento os
participantes dispersam-se e cada qual volta para sua casa, após despedidas
cordiais e tranqüilas.
Outro
ritual importante na “doutrina do Santo Daime”, realizado em cerimônias
especiais, com um alto significado simbólico-religioso é o do “feitio”, ou
seja, da preparação da beberagem.
As
mulheres escolhem, limpar e arrumam as folhas enquanto os homens escovam,
cuidadosamente, o cipó, preparando-o para a maceração. O cozimento é feito nos
panelões onde camadas alternadas do “Banisteriopsis” macerado e folhas frescas
de “Psychotria” são colocadas. Esta preparação é realizada por “especialistas” na área, sendo que a
impressão visual, o sabor e o efeito direto são elementos importantes no
constatar se a preparação está adequada. O mesmo líquido é, em geral, usado no
cozimento de três medidas sucessivas de material fresco destas plantas. Ao
final, obtém-se um líquido espesso e acastanhado que é filtrado para a retirada
do tecido fibroso. De acordo com a etapa de cozimento, o “daime” é designado
como sendo de primeiro, segundo ou terceiro grau, sendo o de primeiro grau o
mais forte, posto que resultante do cozimento realizado com a terceira medida.
Ainda, a beberagem final pode ser mais ou menos ativa, como resultado de maior
ou menor utilização do material (plantas) ou em conseqüência do uso da rama
(parte mais branda) do corpo, propriamente, do cipó ou de suas raízes (a parte
mais forte).
Algumas
amostras podem ser armazenadas, adequadamente, por vários anos, conservando sua
plena atividade.
O ritual da UDV é bem diferente daquele do Santo Daime. Os
participantes reúnem-se por quatro horas – tempo de duração das “sessões”, como
é designado o ritual. Os homens usam uniforme que consiste em calça branca e
camisa verde, e as mulheres, calça ou saia amarelo-ouro e blusa verde. Os
mestres usam camisa verde com uma estrela amarela, somente o
“mestre-representante” usa camisa azul. Permanecem sentados, após a
distribuição do chá, não havendo, assim, bailados. A “sessão” é dirigida por um
“mestre”, ao qual cabe fazer as “chamadas” de abertura e fechamento, hinos que
visam orientar a “sessão”, chamando ou despedindo a força e a luz do Vegetal.
Ao longo da “sessão”, qualquer participante que se sentir habilitado pode fazer
uma “chamada” que tenha aprendido e memorizado, recebida da tradição oral dos
mestres. Durante a “sessão”, ouvem-se música instrumental e cantos que evocam a
natureza ou valores humanos, ocorrendo, freqüentemente, o mesmo processo de
“purificação”, mediante vômitos e diarréia. No transcorrer da “sessão”, o
participante dirige ao mestre, condutor da cerimônia, indagações sobre as mais
diversas questões da vida, com o propósito de receber orientação. E o mestre
responde.
O cipó para o “preparo” (não chamam de
“feitio”, como os daimistas) é trazido da floresta amazônica.
Em julho de
1985, o Conselho Federal de Entorpecentes – CONFEN – foi instado a
manifestar-se sobre a inclusão do “Banisteriopsis Caapi” entre as drogas
integrantes da lista de produtos proscritos, em que passou a constar com as
referências, entre parêntesis, a “cipó de chinchona ou chacrona ou mariri”.
Assim foi designado um Grupo de Trabalho de conselheiros do CONFEN, do qual fui
nomeado presidente. Este Grupo de Trabalho restringiu-se ao estudo da produção
e consumo da citada bebida (“daime” ou “vegetal”).
Dois dos integrantes
do Grupo de Trabalho, os psiquiatras Isac Germano Karniol e Sérgio Dario Seibel
deslocaram-se para Rio Branco, capital do Estado do Acre, para a coleta de
maiores informações que pudessem melhor embasar os trabalhos do grupo, tendo em
vista que, naquele estado, estavam sediadas diversas comunidades usuárias da
ayahuasca. Em outubro de 1985, visitaram três lugares em que se reúnem,
ritualmente, usuários da ayahuasca, todos situados na Capital do Estado do Acre
– Rio Branco – e já mencionados: “União do Vegetal”, “Colônia 5.000” e “Alto
Santo”.
Destaco alguns
tópicos do relatório desta primeira viagem, tendo em vista a importância dos
mesmos para o estudo ora apresentado.
“Padrões
morais e éticos de comportamento, em tudo semelhantes aos existentes e recomendados
na nossa sociedade, por vezes de um modo até bastante rígido, são observados
nas diversas seitas. Obediência à lei pareceu sempre ser ressaltada.
O efeito
observado provavelmente é devido não somente ao chá, mas ao ambiente como um
todo, às músicas e danças concomitantes etc.
Finda a cerimônia todos de uma maneira
aparentemente normal e ordeira voltam aos seus lares.
Os seguidores das seitas parecem ser
pessoas tranqüilas e felizes. Muitas atribuem reorganizações familiares,
retorno de interesse no trabalho, encontro consigo próprio e com Deus etc,
através da religião e do chá.
Antigamente o cipó e a chacrona só eram
encontrados na mata virgem. Algumas seitas têm procurado cultivar estas plantas
com relativo sucesso. Ressalta-se no entanto que a preparação do chá é bastante
difícil e prolongada, envolvendo toda uma “tecnologia” que provém de datas
imemoriais, realizada dentro de um determinado ritual. Da forma como é
preparado nos parece difícil que uma quantidade muito maior que a necessária
nos cultos seja factível de preparo. Ou seja, parece difícil a preparação do
chá em quantidades a serem utilizadas de uma forma não ritual dentro da
sociedade geral.”
Foram realizadas mais cinco visitas a
comunidades usuárias da ayahuasca. A segunda foi em abril de 1986, por mim e
pelo psiquiatra Sérgio Dario Seibel, à comunidade denominada “Céu do Mar”,
situada na Estrada das Canoas nº 3036, na zona sul da Capital do Estado do Rio
de Janeiro. Essa visita teve caráter preliminar, com objetivo preparatório para
outras que faríamos quando da realização do chamado “trabalho”.
Fomos recebidos pelo líder espiritual
da comunidade, o psicólogo Paulo Roberto Silva e Souza que no levou ao local em
que são realizados os “trabalhos”, chamado de “igreja”. Ali nos reunimos com
mais seis seguidores da “doutrina”.
É interessante observar que Paulo
Roberto esteve em Cape Cod – Boston – EUA, onde realizou quatro “trabalhos”, a
convite e às expensas de um grupo de psicoterapeutas americanos que, segundo
informado, manifestou interesse em fundar uma “igreja” em Boston. Ainda,
igualmente por informação do Dr. Paulo Roberto, havia convites para a
realização de “trabalhos” em Madrid, Ilha de Mauí, no Havaí, Londres, Brisbane,
na Austrália e Oslo, na Noruega.
Ficou ajustado o nosso comparecimento
ao “trabalho” que se realizaria no dia seguinte quando, efetivamente,
participamos do mesmo que durou certa de seis horas.
Ambos os visitantes tomamos, por três
vezes, a bebida (a última vez em pequena quantidade). O líquido é de cor acastanhada,
com sabor extremamente acre, repulsivo e nauseante, que nos provocou os
previsíveis vômitos e diarréia. Com os olhos fechados ou entreabertos em estado
de variável torpor, como que em semi-sono, experienciamos percepções sem objeto
externo que, aparentemente, as justificasse. Exatamente isso que a ciência
oficial chama de alucinação. Dela voltaremos a falar mais tarde. Foi possível
observar estas características – dos olhos cerrados ou semicerrados, com leve
fibrilação – no momento em que os participantes experimentavam as visões.
O nome jurídico da comunidade visitada
é “Centro Eclético de Fluente Luz Universal Sebastião Mota Melo – CEFLUSMME”,
que é a titular do imóvel que lhe serve de sede. A área ocupada, não obstante
em plena cidade do Rio de Janeiro, é coberta de densa vegetação, em zona de
reserva florestal do IBDF, 200.000 m², dos quais 20.000 são edificáveis.
Congregava à época, cerca de 200 seguidores, sendo que 30, aproximadamente, já
viviam no local, em comunidade. Esses últimos tinham suas atividades fora
(havia médicos, professores universitários, jornalistas e até uma deputada
estadual) e repartiam as despesas com a manutenção da casa. Os demais
seguidores “fardados” contribuíam para a “igreja” de acordo com suas posses,
segundo depoimentos. Relembre-se que “fardados” são os que, definitivamente,
fizeram opção pela “doutrina”.
A quarta visita realizei em companhia
dos já mencionados psiquiatras Isac Germano Karniol e Sérgio Dario Seibel, em
junho de 1986, à comunidade que tem o nome de “Centro Eclético de Fluente Luz
Universal Rita Gregório” – CEFLURG, sediada na Fazenda Nova Redenção, Visconde
de Mauá-Rezende – Estado do Rio de Janeiro. O dirigente do centro é Alex Polari
de Alverga, jornalista, escritor e ex-prisioneiro político, à época da última
ditadura brasileira. As características básicas, doutrinárias e rituais
adotados no CEFLURG são, em tudo, semelhantes às que foram encontradas no
CEFLUSMME, na capital do Estado do Rio de Janeiro.
Participamos, todos os visitantes, do
“trabalho” então realizado. Notamos pequenas diferenças em relação ao que se
deu no Rio de Janeiro, o que não tem qualquer importância substantiva. Seriam
como as distinções observáveis entre duas missas católicas, celebradas em
paróquias diferentes.
Igualmente ao acontecido na Cidade do
Rio de Janeiro, todos tomamos parte no “trabalho”, com a ingestão da bebida
que, de novo, provocou náuseas e vômitos. Convém observar, entretanto que
pudemos, os visitantes, concluir que atenua os efeitos fortemente eméticos da
bebida e participação no bailado e nos cânticos.
Ainda merece destaque especial o
“trabalho” realizado aos domingos, pela manhã, o chamado “Daime das crianças”,
às quais é servida a bebida, em doses bem menores (os mais novos, alguns de
colo, tomam o “Daime” em colher de café). Havia mulheres grávidas que
participaram dos “trabalhos” do dia anterior e no domingo. Outras que fizeram
relatos de suas experiências, que consideravam muito positivas, de utilização
do “daime” por ocasião do parto.
Uma das mulheres, para citar um
exemplo, narra a percepção que pôde experienciar no momento do parto, levanto-a
ao entendimento pleno daquele instante e da relação de profundo amor com seu
filho que nascia. Acrescenta, então, que o seu relacionamento posterior com esse
filho foi mais intenso e positivo que o outro, vivenciado com seu filho mais
velho.
A quinta visita foi ao centro da
“doutrina” do “Santo Daime”, situado no “Seringal Céu do Mapiá”, no interior da
selva amazônica, cujo roteiro obriga, primeiramente, a ida a Rio Branco,
capital do Estado do Acre e, a seguir, à localidade denominada Boca do Acre, já
no Estado do Amazonas.
Acompanhou-nos, ainda, desde a saída do
Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro até a chegada ao Seringal Céu do
Mapiá o já referido psicólogo Paulo Roberto. Com ele, tendo em vista seus
conhecimentos sobre o trajeto, foram detalhadas as várias fases da viagem,
considerando a complexidade que a mesma envolvia: transportes aéreo, terrestre
e fluvial, inclusive por igarapé, pontos de pernoite, suprimento alimentar e de
água potável, indispensável durante o percurso fluvial, medicamentos, inclusive
anti-maláricos, vacina anti-variólica, rede, corda, cortinado, etc.
Em 14/07/86, chegamos a Rio Branco e,
nesta mesma data, seguimos, por avião, tipo “teco-teco”, para Boca do Acre, em
percurso de, aproximadamente, 30 minutos de duração. A localidade denominada
Boca do Acre, situa-se à margem do rio Purus e sua população, de um modo geral,
era bastante pobre. Ali existe o que os seguidores da “doutrina do Santo Daime”
chamam de “pronto-socorro”. Trata-se de atendimento de emergência, ministrado
por seguidores da seita, autorizados pelo “Padrinho Sebastião”, para pessoas
necessitadas de ajuda em seus sofrimentos físicos ou espirituais. Essas e outras
informações obtivemos junto aos diversos membros da “doutrina”, alguns
residentes no local e outros vindos de outras partes do Brasil.
É interessante notar que a comunidade
existente no interior da selva amazônica, denominada “Céu do Mapiá”, organizou
atividade comercial do tipo restaurante ou lanchonete, em Boca do Acre. A
localidade é um ponto importante, portanto, na estruturação da comunidade
assentada na selva, visto que lhe serve, como depois pudemos constatar, de
pequeno mercado consumidor de produtos vindos do “Céu do Mapiá” – tais sejam o
látex que extraem do seringal, o açúcar mascavo e produtos agrícolas
consumidos, inclusive, no negócio já referido. Ao mesmo tempo, Boca do Acre
serve como abastecedor aos que vivem no seringal, dos gêneros de que
necessitam, como roupas, medicamentos, ferramentas, utensílios domésticos, etc.
No dia
seguinte, partimos, pela manhã, de Boca do Acre na barca “Tucuxi”, do INCRA,
seguindo pelo rio Purus, até a Boca do Igarapé do Mapiá, momento em que o
transporte somente pôde ser feito por canoa. Pernoitamos em redes armadas, em
cabana desocupada, à margem do Igarapé, tendo em vista que se torna
extremamente perigoso seguir viagem durante a noite, com as naturais
dificuldades de visão e ante a grande sinuosidade do Igarapé, com numerosos
troncos e galhadas que hão de ser evitados, durante todo o percurso.
Anote-se, ainda, que fomos, reiteradas
vezes, advertidos dos cuidados que deveríamos ter com o pisar no leito do
Igarapé, em razão das temíveis picadas de arraias. É importante este brevíssimo
relato das dificuldades e condições adversas que o viajante deve enfrentar para
chegar ao “Seringal Céu do Mapiá”, a comunidade do “Padrinho Sebastião” e da
“Madrinha Rita”. Pudemos constatar que pessoas de varais regiões do Brasil
(Brasília, Bahia, Cidade do Rio de Janeiro, Visconde de Mauá) cruzaram conosco
no percurso. A impressão causada, foi a de que muitas daquelas pessoas tinham
características de verdadeiros peregrinos, em romaria ao centro da “doutrina do
Santo Daime”, em busca do contato sagrado com o velho de barbas apostólicas – o
“Padrinho Sebastião”. Justificava-se, pois, enfrentar tantos incômodos e
dificuldades. Isso tudo, associado à procura de integração com a natureza,
parece um material muito rico a ser consignado para posterior análise dos
pesquisadores sociais.
No dia
16/07/1986, chegamos ao “Seringal Céu do Mapiá”, onde permanecemos até o dia 19
do mesmo mês, quando partimos. Era um pequeno povoado com cerca de duzentos e
cinqüenta pessoas, que se plantou e desenvolveu no seio da selva amazônica.
Conforme já
dissemos antes, havia gente de várias partes do Brasil e, até, estrangeiros.
O primeiro
lugar que visitamos foi onde estava armazenadas as folhas (“rainha”, também
chamada de “chacrona”) que serviriam ao “feitio”, como é designado todo o
processo de preparação do “Daime”.
A nova “casa
do feito” estava sendo ultimada. Compunha-se de fornalha para a preparação de
bebida em panelões de alumínio, com capacidade de até 120 litros, e cepos
dispostos em duas filas de sete, uma em frente à outra, com pequenos bancos
onde os seguidores da “doutrina” sentam-se para a “bateção”. A “bateção” é o
processo de maceração do cipó, o que era feito, em golpes cadenciados, com
macetes fabricados pelos próprios membros da comunidade.
Visitamos,
ainda, lugares destinados à moagem da cana, à feitura do açúcar mascavo, ao seu
armazenamento. Há lavouras para a própria subsistência da comunidade que
precisa, apenas, adquirir fora (em Boca do Acre) o sal. Ainda, a obtenção do látex
e a sua venda constituem importantes fatores para a economia daquela
comunidade.
Finalmente,
fomos à “casa de cura” destinada, como o próprio nome sugere, aos rituais que
têm o objetivo de mitigar ou eliminar os sofrimentos físicos ou espirituais dos
que recorrem à “doutrina”.
À noite todos
os visitantes participamos de um “trabalho”. Mais uma vez pôde ser constatada a
semelhança ritual com o que presenciáramos na Cidade do Rio de Janeiro e em
Visconde de Mauá. A participação dos visitantes foi completa: na ingestão da
bebida, nos cânticos e no bailado.
Participamos
todos da cerimônia do “feitio” que culminou com a tomada do “daime” novo. Não
foi como os demais “trabalhos”. A bebida foi tomada na própria “casa do feito”,
que se encontra numa clareira aberta no meio da mata, distanciada das cabanas.
A bebida nova parece ter sabor menos acre e repulsivo, mas, de novo, diversos
participantes vomitaram.
Desta vez
ficamos todos sentados e cânticos foram entoados. É forçoso notar que o
ambiente, o contacto com a floresta amazônica, em noite de lua cheia, os hinos
e suas letras que evocam a força dos elementos e do poder divino, e a vontade
recíproca de encontro com o outro e com o sagrado, têm importante influência
nas percepções ou manifestações ocorridas com os participantes.
No percurso de
volta, de novo cruzamos com uma canoa de “romeiros”, com aproximadamente seis
pessoas vindas de Brasília, Bahia e Rio de Janeiro, em busca do sagrado que o
Seringal Céu do Mapiá significa para eles.
A sexta visita
foi realizada em companhia de Isac Germano Karniol, Sérgio Dario Seibel e a
psicóloga Clara Lúcia Inem, nos dias 12 e 13 de setembro de 1986 ao Centro
Espírita Beneficente União do Vegetal, sediada, no Rio de Janeiro, na Estrada
do Carretão, em Jacarepaguá.
Da mesma forma
do que ocorreu nas demais visitas, o grupo visitante participou do “preparo”
(equivalente ao “feitio”, segundo a denominação da vertente do “Santo Daime”) e
da sessão (ou “trabalho”, para os daimistas) que se seguiu, com duração de
quatro horas).
A UDV, no Rio
de Janeiro, é titular de sua sede, situada em área bastante arborizada, com
cerca de 6000m². Tinha, então, 117 membros no Rio de Janeiro e em torno de 2000
em todo Brasil. Os membros que podem pagam mensalidade para a entidade,
correspondente a 10% do salário mínimo. Quem for pobre e não puder pagar, nada
lhe é cobrado. Há, ainda, os que, a seu próprio juízo, pagam mais.
Antes dessas
atividades desenvolvidas pelo CONFEN, é de grande interesse saber porque a
ayahuasca foi parar nas listas de substâncias proibidas.
Há um fato
importante que foi possível constatar. Trata-se de prisão em flagrante de um
rapaz, à época com 22 anos de idade, chamado Éder Cândido Silva. A prisão
ocorreu em Rio Branco, capital do Estado do Acre, em 30 de setembro de 1981.
Este jovem, “portando uma mochila de
cor verde e que despertou a atenção tanto do condutor como de seus colegas
policiais” (conforme se lê no “auto de prisão em flagrante”), foi detido pelos
policiais que “resolveram realizar uma busca pessoal no indivíduo...” (cf.
“auto de prisão” citado) em poder de quem foi encontrada “maconha”. O preso
morava na “Colônia Cinco Mil” onde havia maconha plantada.
No dia
seguinte, isto é, em 1º de outubro de 1981, a Polícia Federal dirigiu-se à
“Colônia Cinco Mil” e lá arrecadou os pés, sementes e folhas de maconha.
Pode-se dizer, portanto, que o “banisteriopsis” entrou, posteriormente, na
lista da DIMED, por causa da “maconha” que estava sendo usada à época, na
“Colônia Cinco Mil”, uma das dez outras comunidades que, entretanto, eram
usuárias, exclusivamente, da ayahuasca. O fato é que, somente a partir da
prisão de Éder, por porte de maconha, repita-se, foram desencadeadas várias
investigações nos diversos grupos usuários da beberagem, em especial, na comunidade
liderada pelo “Padrinho Sebastião”.
O episódio tem
suma importância posto que não pôde o Grupo de Trabalho apurar um único
registro, objetivamente comprovado, que levasse à demonstração inequívoca de
prejuízos sociais causados, especificamente, pelo uso até então feito, da
ayahuasca. Reitere-se que o objeto do exame do Grupo de Trabalho era a
ayahuasca, não a maconha, a cocaína ou qualquer outra droga e somente problemas
causados, diretamente, pelo uso da beberagem objeto de análise é que,
evidentemente, poderiam ou podem ser considerados.
Ao término dos trabalhos e da feitura do
relatório das visitas e pesquisas realizadas, em 1986, o CONFEN decidiu pela
manutenção da exclusão do “Banisteriopsis Caapi” da lista de produtos
proscritos, da Divisão de Medicamentos – DIMED, do Ministério da Saúde.
Mas em 1989,
uma denúncia anônima fez deslanchar o reexame da questão do uso da ayahuasca no
Brasil.
Interessa
destacar alguns tópicos dessa denúncia, pelo que eles têm em comum com algumas
fantasias, sem qualquer consistência, que tive a oportunidade de colecionar
nestes anos.
a) Os adeptos são
“calculados nos grandes centros urbanos em mais de dez milhões de fanáticos”.
b) Os dirigentes
“são todos toxicômanos e ex-guerrilheiros...”
c) A ingestão do
chá exige “o abandono da vida física... levando os adeptos ao torpor mental
após as cantigas que induzem ao abandono físico, ao abandono da família...”
d) “O adepto cai
em exaustão e aí então começa a queima de ervas a títulos de incenso, com
portas e janelas fechadas do templo, que os entendidos dizem ser maconha...”
e) “O vegetal é
misturado na hora da ingestão, sem que ninguém perceba, ao LSD ou droga
semelhante.”
f)
São os adeptos “induzidos ao trabalho escravo” e a doações
polpudas.
g) “vários
mestres... são procuradores do Banco Central, Bancários, Professores, e etc...”
h) “Interiormente
sente-se a necessidade do auxílio mútuo, não sei se provocado pela droga ou
pela indução sugestiva...”
i)
“Isto não está pondo em risco a segurança nacional?”
j)
O denunciante anônimo enumera o que chama de “providências
tomadas... sem solução”. Entre elas, um dossiê, em 1982, ao cardeal Eugênio
Salles e a uma “alta autoridade presbiteriana”; em 1984 “comparecimento pessoal
à Polícia Federal “e, nesse mesmo ano de 1984, reporta sua ida ao Juizado de
Menores – Av. Presidente Vargas. Fui pessoalmente informado pelo Exmo. Sr. Juiz
de Direito Substituto que caso tomasse providência, estaria pondo em risco seu
cargo, pois seu superior hierárquico, foi seu colega de faculdade, e era
toxicômano, e foi ele que liberou tal droga”.
k) Em foto de um
dos líderes de comunidades usuárias da ayahuasca – o “Padrinho Sebastião” – fez
o anônimo denunciante diversas anotações. Cito, entre elas: “representante da
divindade em nosso planeta, totalmente analfabeto, líder de uma comunidade de
mais de 10.000.000 de adeptos em todo Brasil, só no estado do Acre, 80% faz uso
desse chá constantemente.
l)
“Crianças: coitadas... irão por mais de 72 horas ficar em
vigília, totalmente angustiadas por visões horripilantes...”
m) “De quem é a
culpa de tudo isso?... De um contra ataque das guerrilhas urbanas, acho esse o
pensamento mais viável.”
Fui designado
pela Dra. Ester Kosovski, presidente do CONFEN, à época, para exame e parecer,
solicitando, especialmente, “a atualização dos dados dos relatórios anteriores,
com as verificações locais que se fizerem necessárias”.
Além de um
juízo pessoal sobre a matéria, sob a ótica jurídica e filosófica, busquei
assessorar-me, junto a respeitados especialistas e professores nas áreas de
antropologia, psicofarmacologia e psiquiatria, de preferência que já tivessem
se ocupado, em algum nível, com a questão da ayahuasca.
Para a
atualização dos dados dos relatórios anteriores, voltei a contactar lideranças
das comunidades usuárias do chá, agrupadas nas duas principais vertentes –
a “União do Vegetal – UDV” e o “Santo
Daime” – com o objetivo de organizar visitas, colher novas informações e
documentos sobre o desenvolvimento e atividades daquelas comunidades.
Visitei,
novamente, as diversas comunidades e promovi reunião, de uma só vez, com os
representantes de todas as entidades às quais estão filiados os diversos
centros usuários da ayahuasca existentes no país, em encontro realizado na sede
da Prefeitura de Rio Branco, Acre. Nessa oportunidade recebi numerosos
documentos das diversas entidades, relativos a seus atos constitutivos,
estatutos, depoimentos de seguidores das várias seitas, com relatos de cura, de
reencontros familiares e
redirecionamentos positivos de vida. Interessa, preliminarmente, indagar
sobre as causas prováveis da denúncia.
Até a época do
último parecer, nas pouquíssimas denúncias assinadas e, portanto, de autoria
conhecida, (apenas três – desde julho de 1985 – em que o CONFEN passou a lidar
com o assunto) os denunciantes eram pais inconformados com a opção de seus
filhos. Em dois desses casos, os filhos eram homens e no outro uma jovem, todos
maiores e de classe média elevada, residentes na Cidade do Rio de Janeiro.
Nesses três casos tive a oportunidade de entrevistas os filhos e, em dois
deles, os pais (o pais em um e a mãe no outro). Na realidade, pude constatar
com toda clareza, que o problema enfrentado, nessas três histórias verídicas,
foi a de radical divergência entre pais e filhos quanto aos projetos de vida e
modelos que aqueles tinham para esses, muito mais que as repercussões das
práticas rituais de consumo da ayahuasca no sistema nervoso central dos mesmos.
Tais “repercussões”, entretanto, serviam, sempre, de carro-chefe das denúncias.
É interessante notar, contudo, nesses três casos, segundo fui informado, o
tempo de encarregou da superação do problema: os pais e filhos passaram a
conviver nas diferenças. Ainda, um dado importante. Os três casos citados
referiam-se a adultos bem jovens que buscavam uma nova experiência de vida – em
comunidade – diferente daquela que levavam até então, com a qual, portanto,
romperam. Essa proposta de vida comunitária é mais característica dos
seguidores do Santo Daime a cuja vertente pertenciam os três jovens.
O “abandono da
vida física” e o “abandono da família” são aspectos trazidos pelo denunciante
anônimo para sinalizar o estado de dependência que, como observa Anastácio
Morgano, “caracteriza um investimento total em apenas uma nesga da realidade”.
(14) Os “fanáticos” estariam, assim, voltados, exclusivamente, para a vida
espiritual. Por isso o “abandono da vida física” e “da família”.
Entretanto,
desmentem, por completo, o denunciante anônimo, diversos fatos que pude
constatar nestes dez anos em que lido com a questão, cuja análise, porém, seria
bem mais difícil se existisse somente uma vertente de comunidade usuárias: a
UDV ou o Santo Daime.
Adiantei, de
certa forma, a razão porque a existência das diferentes vertentes facilita a
boa equação do problema, quando me referi aos casos de jovens que abandonaram
os modelos urbanos de vida que praticavam, para viver no campo ou na floresta.
Há vários casos de pessoas que optaram por deixar a vida da cidade ou deixaram
a proximidade dos familiares, para viver no campo, na floresta ou em comunidade.
E todos eles ocorreram, dadas as características próprias da vertente Santo
Daime que, a partir de Sebastião Mota de Melo – o “Padrinho Sebastião” – abriu
uma nova linha de seguidores, no início da década de 80: jovens “classe média
das grandes metrópoles do sudeste”, como refere McRae, muitos dos quais
“hippies” ou “mochileiros”, perfil que, por si só, já “identifica” ou, talvez
melhor seria dizer, estigmatiza, para muitos, uma determinada geração.
É interessante
notar, para bem compreender o que significa “abandono da vida física” ou “de
família”, o preconceito que informa tal alegação. É preciso refletir e repensar
a sociedade em que vivemos onde, com facilidade, classificamos de loucas ou
alienadas as pessoas que, com ou sem ayahuasca, optam por formas de vida
diferentes das nossas ou buscam processos de conhecimentos ou de realização
pessoal diversos daqueles estabelecidos.(15)
Aliás, o que a
sociedade rejeita é loucura não partilhada, a loucura “anormal”, isto é, aquela
que foge à insanidade comum. Tantas vezes têm sido classificados de loucos
comportamentos que, entretanto, nada mais são do que diferenças culturais não
assimiladas e nem admitidas.
“As definições
de loucura variam não só de região para região, como de família para família,
em obediência a normas de comportamento que acabam por codificar ”a forma
corrente de ser louco”, observa Maria José de Queiroz, acrescentando que para
Michel Foucault, “cada cultura faz da doença uma imagem cujo perfil é desenhado
pelo conjunto das virtualidades antropológicas que ela negligencia ou que
reprime”. E conclui: “Há, em toda parte, a maneira conveniente ou aceitável de
ser louco.”(16)
Bem diferente
é a União do Vegetal que, hoje, tem marcadas características urbanas, em que
seus membros mantêm as ocupações absolutamente comuns das cidades. Um associado
da UDV – que em suas práticas culturais adota a mesmíssima ayahuasca –
conserva, entretanto, hábitos, estilos de vida e profissões, idênticos aos dos
demais integrantes das comunidades urbanas.
Provavelmente,
por essa aparência mais comum e citadina, um jovem, principalmente, associar-se
à UDV não significa para a família e para a sociedade, uma ruptura. Não que a
filiação ao Santo Daime traduza, necessariamente, rompimento. Seguramente, na
maioria das vezes, isto não acontece. Mas a opção de alguns de deixar a vida na
cidade para morar numa comunidade rural ou no interior da floresta amazônica (o
que constitui a absoluta minoria, repito), certamente para muita gente é
“loucura”, ou, como para o denunciante anônimo, “abandono de vida física”.
É semelhante
ao que muitos pais sentiram frente à opção pela clausura ou pela vida monástica
de seus filhos, como a historia é pródiga em revelar.
A denuncia
buscava, evidentemente, argumentar com terror, baseado nos “milhões” (na
verdade não chegam a dez mil) de adeptos fanáticos, que foram levados, pela
ingestão do chá, literalmente, ao “abandono da vida física”, não obstante
tenham sido, paradoxalmente, “induzidos ao trabalho escravo”, o que,
obviamente, exige o máximo, precisamente, de “vida física”, não o seu abandono.
Salta às
vistas a incompatibilidade entre o “abandono da vida física” e a manutenção das
profissões referidas pelo denunciante.
Constatei
numerosos depoimentos dos seguintes profissionais: médico, funcionário público,
advogado, militar, empresário, psicólogo, procurador de estado, professor
universitário, arquiteto, engenheiro, radialista, economista, publicitário,
escritor, bancário, cacauicultor, fiscal de tributos estaduais, chefe de
arrecadação de delegacia de receita federal e estudante, todos filiados à UDV,
em diversos núcleos.(17)
E filiados ao
Daime há profissionais de quase todas as áreas citadas acima, além de atores e
atrizes que freqüentam, diariamente, programas e novelas de televisão.
As crianças
são, textualmente, “coitadas... totalmente angustiadas por visões
horripilantes”. A partir desse quadro apocalíptico, em que as comunidades
usuárias da ayahuasca são comandadas por “toxicômanos e ex-guerrilheiros...” a
conclusão somente poderia ser uma, colhida na resposta que o próprio
denunciante formula: “De quem é a culpa de tudo isso?... De um contra-ataque
das guerrilhas urbanas, acho esse o pensamento mais viável”.
Toda essa
historia seria até divertida, não fora o resultado gravemente oneroso provocado
por ela: inquéritos policiais, intranqüilidade para inúmeras famílias que, a
cada nova composição do CONFEN, são, injusta e ilegalmente, postas sob suspeita
criminal, à mercê de qualquer denúncia - anônima ou assinada – por mais tresloucada
que seja, exaustivos e dispendiosos trabalhos como os que foram necessários
para a realização dos pareceres mencionados.
Só o covarde
anonimato pôde livrar o denunciante de ser criminalmente processado, devido a
acusações graves e gratuitas. O exemplo mais chocante desse tipo de acusação
que demonstra, aí sim, a perigosa insanidade do denunciante, está na afirmação
de que, em 1984, dirigiu-se ao Juizado de Menores, no Rio de Janeiro e que foi
pessoalmente informado pelo “Juiz substituto que temia por seu cargo e por isso
não tomaria providência porque o ”superior hierárquico“ daquele magistrado era
toxicômano e ele próprio liberara a ayahuasca. O absurdo, o ilogismo e a
desfaçatez de tal afirmação dispensa qualquer outra consideração, além da
simples citação da mesma que, por si só, revela a inconsistência e a falta de
seriedade da denúncia.
Assim, no
mesmo padrão de delirante sandice foram classificadas as disparatadas
afirmações de “trabalho escravo”, “risco à segurança nacional”, “contra –
ataque das guerrilhas urbanas”, mistura de “LSD ou droga semelhante” à bebida,
queima de maconha como incenso “com portas e janelas fechadas do templo” e
“crianças... totalmente angustiadas por visões horripilantes...”.
Insensata a
afirmação de misturas de LSD à ayahuasca “sem que ninguém perceba”. Em primeiro
lugar, reflita-se bem em tal disparate. Há setenta anos a bebida em questão é
utilizada em rituais brasileiros. Desde que data quer o denunciante anônimo
misturar ayahuasca com LSD? E por proposta de quem? Dos seringueiros e líderes
religiosos, mestre Irineu, do Santo Daime ou mestre Gabriel, da UDV? Ou será
nova orientação vinda da sede do Daime, na floresta Amazônica? Ou da UDV? E por
que a mistura? A bebida seria placebo?
Além de tudo
isso, sabemos todos que a duração dos efeitos do LSD é várias vezes maior que a
da ayahuasca, essa última em torno de duas horas. Imaginem somados!
Entretanto,
importa acentuar, no caso, que o “rito de expiação” da ayahuasca (vômitos e
diarréia) fez dela, com suas características naturais e não sintéticas, objeto
de interesse radicalmente diferente do que caracterizou e caracteriza o LSD. As
características especialíssimas dessa bebida – a ayahuasca - “impõem
exigências” para que aqueles que a usam dela possam tirar o proveito procurado.
Essa “exigências” referem-se à multiplicidade de usos sempre rituais, à adesão
à “doutrina”, à assunção, pelo usuário, de padrões de conduta em sua vida
pessoal. A farmacologia não é, assim, o bastante – muito ao contrario – para
avaliar os “efeitos”, ou as “causas” disso que está rotulado,
farmacologicamente e de forma indistinta, como droga.
A pergunta é,
desde Sócrates, com sua maiêutica, um dos melhores instrumentos de descobrir a
verdade. E, no caso, a verdade que se descobre é a evidente improcedência das
alegações do anônimo denunciante.
O registro
fotográfico das visitas às comunidades usuárias da ayahuasca ilustra,
igualmente, que não há, em vários locais de celebração, sequer como fechar
portas e janelas para a queima de incenso ou maconha e, assim fechadas,
obter-se a “melhor intoxicação dos presentes”, pelo simples fato de que, em
vários templos não há, praticamente, portas e janelas e, em outros, o espaço
muito amplo inviabilizaria o ambiente esfumaçado, nos moldes propostos pelo denunciante
anônimo, de tal sorte que o incenso ou as ervas se constituíssem em fator
psicoativo digno de nota.
A historia de
“crianças... totalmente angustiadas por visões horripilantes” é desmentida, por
completo, ao que se constata em visitas a praticamente todas as principais
comunidades. E note-se que crianças não conseguem disfarçar, principalmente
“angústia total” e visões horripilantes “.
Vale a pena
citar o que diz o jornalista Elias Fajardo (18), sobre as crianças do Céu do
Mapiá, em matéria de página inteira, do jornal do Brasil, de 13/01/1991,
domingo, na seção sobre meio ambiente.
“... os
meninos do Mapiá nadam no igarapé, deixam-se levar pelo movimento amoroso das
águas e acreditam na doutrina que prega a união do sol, da lua e das estrelas”.
As fotos
feitas no Seringal Céu do Mapiá ilustram as palavras do jornalista.
Para concluir
a análise da denúncia anônima, é interessante destacar que a prática ritual,
histericamente condenada pelo denunciante oculto, leva-o, entretanto, a
declarar textualmente:
“Interiormente
sente-se a necessidade do auxílio mútuo...”.
Em primeiro
lugar, observe-se, por ser fundamental, que provocar, interiormente, o sentido
“do auxílio mútuo” dá a clara dimensão da natureza social e ritual da
ayahuasca. No dizer de Clodomir Monteiro(19), “o uso do Santo Daime é quase
exclusivamente social, o que implica sempre um tipo de seqüência de atos ou
ritos a observar-se”.
Por último,
talvez seja essa a única – e importantíssima – contribuição à causa da verdade
que o denunciante anônimo propiciou: a descoberta que ele mesmo fez da
“necessidade de auxílio mútuo”.
A denúncia não
tinha, como, aliás, jamais teve, qualquer consistência ou o mínimo de seriedade
que justificasse o reexame da matéria, com a conseqüente intranqüilidade de
pessoas e famílias integrantes de comunidades que têm o direito de optar pelo
culto religioso que lhes convier, desde que não ofendam a lei ou a ordem
pública.
A conclusão do
CONFEN resultou dos desdobramentos que abordaremos a seguir.
A química da Ayahuasca
Em 1992, junto
à denúncia anônima que provocou o reexame da questão da ayahuasca no Brasil,
foram adicionadas ao quadro pintado pelo denunciante, as tintas do parecer do
ilustre Dr. Alberto Furtado Rahde, à época conselheiro do CONFEN, do qual importa
destacar as seguintes considerações formuladas pelo mesmo, sobre o consumo da
bebida:
a) “reações por
vezes muito prejudiciais ao organismo”, conseqüentes de uso do chá “com alimentos ricos em tiramina”;
b) “Podem ocorrer
modificações severas de personalidade”;
c) A produção de
“estados alterados de percepção, ânimo e comportamento”;
d) O “uso do
“daime” em todo o país excedeu o uso local de origem, na selva amazônica”.
e) É
necessária “a caracterização do uso
ritual e restrito do daime”.
Em análise de
conteúdo estritamente técnico, o professor da Unicamp, Isac Karniol, atendeu a
solicitação que lhe dirigi para assessorar nosso trabalho em seu campo
específico de conhecimento. Concluiu ele que, na mistura do “Banisteriopsis
Caapi” com a “Psychotria Viridis” são encontradas betacarbolinas, como harmina,
harmalina, tetrahidroharmina, além da N-dimetiltriptamina. A dimetiltriptamina
é muito mais ativa que os outros constituintes. No entanto, sua ação quando
utilizada, isoladamente, por via oral seria limitada, pois rapidamente é
metabolizada nos tecidos periféricos por enzimas chamadas monoaminooxidases. As
betacarbolinas inibem estas enzimas possibilitando então uma ação mais
prolongada de N-dimetiltriptamina. Este mecanismo foi estudado, recentemente,
por McKenna e Cols.
Independente
do constituinte ou constituintes químicos que a compõem é indiscutível que a
ayahuasca, como um todo, tem efeito alucinógeno (observadas as divisões
clássicas das drogas).
Quanto às
ações no organismo, como um todo, desta preparação, agudamente, ela produziria
a conhecida ação alucinógena, afora outras possíveis atuações periféricas, como
vômitos, diarréia, etc.
Depois desta
breve introdução sobre a estrutura química da ayahuasca, feita pelo professor
Karniol, quero ressaltar que o entendimento maduro e mais evoluído em matéria
de drogas não pode acolher a visão mecanicista da questão, a ótica do
determinismo farmacológico. Exatamente por esse motivo, hoje é de indiscutível
aceitação a perspectiva holística do tema. Por isso, como todos sabemos, a
equação correta se dá a partir da análise de três fatores: o indivíduo, o
ambiente e o produto, nesta ordem, acrescento. Não fosse assim e bastaria
contratar um técnico que tivesse os conhecimentos necessários para identificar
os componentes químicos de determinada substância. Isso seria o bastante para
saber se a mesma deveria ou não ser proibida.
A pessoa
humana, a partir de uma tal visão mecanicista, seria elemento secundário, ao
contrário de central, na análise a ser feita. Algo parecido a uma fórmula que,
por exemplo, no caso presente poderia ser: pessoa + DMT = “abandono de vida
física”, ou então, pessoa + harmina = acidente vascular cerebral.
Ora, este
modelo unidirecional e mecanicista, que imagina o ser-humano como se fosse
máquina, está para a perspectiva holística da questão das drogas assim como a
física clássica de Newton, está para a física quântica que obrigou a repensar a
estrutura da matéria, insuscetível de ser reduzida ao espaço absoluto, sempre
em repouso e imutável. “A visão mecanicista da natureza”, nos diz o físico
Fritjof Capra (20), “acha-se dessa forma intimamente vinculada a um
determinismo rigoroso. A grande máquina cósmica era vista como algo
inteiramente causal e determinado. Tudo o que acontecia possuía uma causa
definida e gerava um efeito definido”.
Repito, a
adotar-se o determinismo farmacológico, melhor será contratar o técnico a que
me referi acima e dissolver o CONFEN, por absolutamente supérfluo.
É óbvio,
entretanto, o inestimável valor das contribuições farmacológicas e
psiquiátricas, desde que não absolutizadas. Por isso, devem ser avaliadas no
conjunto multidisciplinar que o tema oferece ao estudioso. Exatamente por isso,
as opiniões do mais alto valor científico que subsidiaram nosso estudo são de superlativa
importância, pois enfrentam a questão no âmbito específico de suas respectivas
áreas, sem perder em nenhum momento, entretanto, a visão de conjunto de outros
planos do conhecimento e das imprescindíveis interações com os mesmos.
Transcrevo, a
seguir, as consultas feitas aos eminentes professores E.A.Carlini e Isac
Karniol, consultas essas que têm o mesmo teor.
“REF.
a) O uso da
ayahuasca no Brasil
b) Parecer do Dr.
Alberto Furtado Rahde, de 20.1.1989, então conselheiro do COFEN, cuja cópia ora
se envia.
Caro Professor
Conforme
entendimentos verbais que mantivermos, é a presente para solicitar a valiosa e
inestimável colaboração de V.Sa., cujo envio até 31 de março seria muito
apreciado, no sentido de opinar sobre o assunto em referência, especialmente no
que respeita aos seguintes itens, constantes do parecer supracitado e que
exigem maior esclarecimento.
a) Quais as
“reações por vezes muito prejudiciais ao organismo” (parecer - item 6, in fine)?
b) Quais as
‘modificações severas da personalidade’, já constatadas até então (parecer -
item 8)?
c) Os ‘estados
alteradas de percepção, ânimo e comportamento’ (parecer - item 8) significam,
necessariamente, situações negativas, prejudiciais ou patológicas?
Rogo, ainda,
os bons ofícios de V.Sa. no sentido de oferecer todo e qualquer outro
esclarecimento que entender útil ao mais amplo aclaramento da questão em
epígrafe que me foi encaminhada para exame e parecer por designação da Sra.
Presidente do CONFEN.
Importa
lembrar, finalmente, que desde a Resolução/CONFEN, nº 6, de 4/2/1986, é
legítimo o uso da ayahuasca no país.
Renovo a V.Sa.
minha mais elevada estima e distinta consideração”
Em resumo,
respondeu o Professor Carlini:
a) os possíveis
prejuízo para o organismo (crises de hipertensão que podem resultar em acidente
vascular cerebral) dependeriam da - in
verbis: “liberação maciça” de noradrenalina, cujo “agente liberador mais
conhecido é a tiramina”. Mas essa
liberação ocorreria no consumidor da bebida caso viesse a - textualmente:
“ingerir queijos altamente fermentados ou doses elevadas de alguns vinhos”;
b) as alterações
na mente do usuário da ayahuasca, verbis:
“Não significam modificações de personalidade mas sim alterações temporárias do
nosso sensório”.
c) “As alterações
mentais acima citadas” continua o eminente professor, “podem ser “canalizadas”
para um lado positivo na vida social e individual”.
Cita artigo
sobre “as funções psico-sócio-terapêuticas da ayahuasca e conclui -
textualmente: “Existem também exemplos de outras plantas ou preparações
alucinógenas utilizadas em rituais religiosos, sem prejuízos (até pelo
contrário) para as populações usuárias...”
E perguntado
se os estados alterados de percepção, ânimo e comportamento significam,
necessariamente, situações negativas, prejudiciais ou patológicas, conclui - verbis: “minha resposta em relação a
este terceiro item é pela negativa”.
Igualmente, as
considerações do Professor Isac Karniol são as seguintes, resumidamente.
“Convenci-me
que com os conhecimentos atuais uma proibição do uso pelas seitas religiosas
destas plantas seria uma violência muito maior que a produzida por eventuais
efeitos colaterais das mesmas.”
Quanto aos
quesitos:
a) sobre a
possibilidade de “reações... muito prejudiciais ao organismo” declara que “não
foram comprovadas”.
b) Ainda,
acrescenta que “não foram cientificamente comprovadas modificações severas de
personalidade” pelo consumo da bebida, não obstante as alterações
senso-perceptivas, direcionadas pelos “mestres” que, ainda, limitam a
quantidade ingerida.
c) “De modo
nenhum consideramos que os “estados alterados de percepção, ânimo e
comportamento, significam, necessariamente, situações negativas, prejudiciais
ou patológicas”. Estas seitas talvez representem uma procura que deve ser
acompanhada, mas de modo algum previamente censurada”.
Há mais de dez
anos, o uso da ayahuasca é legítimo no Brasil, desde a interdição de 1985,
suspensa em 1986, e não se tem notícia de um único caso, cientificamente
comprovado, de problemas mentais efetivamente causados ou gerados pelo referido
uso. Tampouco há referência a abuso ou qualquer outro comportamento perturbador
da ordem social.
Há,
evidentemente, casos de pessoas, já portadoras de problemas, e que fizeram uso
do chá ou mesmo que, sem patologias aparentes, apresentaram condutas
autolesivas ou anti-sociais. Em primeiro lugar esses casos são pouquíssimos,
contam-se nos dedos. Além disso, é absurdo tomar a parte pelo todo ou confundir
as instituições com o comportamento individual de seus integrantes. Basta
lembrar, por exemplo, que respeitabilíssimos e tradicionais estabelecimentos de
ensino já tiveram a desgraça de contar, entre seus quadros, com alunos
suicidas, já foram acusados de tolerância com práticas de tortura ou de
exercícios homicidas. Desvios de conduta individual podem ser identificados em
quase todas - senão em todas - as espécies de instituições humanas. O que
importa é a busca intransigente e constante das instituições, no sentido de sua
integridade e aperfeiçoamento.
No caso das
entidades usuárias do chá, o desenvolvimento de adequados mecanismos de
controle deve ser objeto de perseverante e rigorosa preocupação de seus
dirigentes, como, aliás, deve acontecer em cada organização humana de acordo
com as peculiaridades de cada qual.
Atente-se para
o fato de que, antes de 1985, a bebida foi consumida por várias décadas, em
práticas rituais, sem anormalidades. Muito ao contrário, tais práticas exerciam
e exercem função integradora dos usuários ao meio em que vivem, ressaltada “a
conduta pacífica e ordeira dos adeptos das diversas seitas” (cf. McRae).
Aí está a
melhor prova de que a comunidade tem os melhores controles do uso da bebida e
os coloca em prática com melhor competência. Diga-se de passagem, que não só no
caso do chá, mas de maneira geral, a sociedade sabe sempre organizar, de forma
mais adequada, seus mecanismos controladores de eventuais excessos, surgidos
nas relações privadas, familiares ou sociais.
O uso tem sido
sempre ritual, até mesmo pelos efeitos provocados pela bebida que a fazem, como
já apontado por Clodomir Monteiro, “quase exclusivamente social”, com a
constância de uma liturgia, sempre observada. Além disso, conforme referido
antes, é eficientíssimo o controle exercido pelas direções das diversas
comunidades.
O confinamento
das práticas rituais à Cidade do Rio Branco não tem qualquer embasamento lógico
ou científico. Em primeiro lugar, basta circular pelas ruas de Rio Branco,
sentar-se à mesa de um restaurante ou ligar o rádio ou a televisão, para
constatar a identidade de programas, a semelhança de modas e padrões
“propostos” (melhor seria, impostos) aos diversos Estados da Federação. Não há
troca, pois não se leva em conta, obviamente, as características próprias das
diversas regiões, o que é lastimável. Certamente seria benéfico injetar, no sul
e sudeste brasileiros, maior dose de floresta amazônica que contaminar essa
última com o consumismo e a vacuidade das megalópoles.
Além disso,
mesmo se adotada, de forma unitária, a visão farmacológica, não há porque, como
é óbvio, fazer distinção entre a fisiologia do brasileiro do norte e os outros
do sul
.
Há hoje, o
“feitio” ou “preparo” (rito de preparação da bebida) já realizado em diversos
centros, sendo idênticas, assim a composição de bebida em todas as entidades.
Aquelas que não realizam a preparação local da bebida, recebem-na,
principalmente na região norte do país.
Importante,
ainda, é o que diz McRae sobre o que significaria restringir as práticas
rituais com ayahuasca ao interior da floresta: “tal restrição seria equivalente
à proscrição dos serviços religiosos mais importantes das diversas seitas
ayahuasqueiras que conforme já foi visto, são e sempre foram predominantemente
urbanas. Essa proscrição acabaria sendo contraproducente, pois acarretaria no
enfraquecimento das estruturas centralizadoras e hierárquicas das seitas que
exercem um papel fundamental no controle do uso do chá. Esse controle, até
agora, tem-se mostrado altamente eficaz, tendo em vista a atuação ordeira e
socialmente inofensiva das diversas seitas.” (21).
Depreende-se
dos elementos colhidos de áreas abrangidas pela psiquiatria e pela
psicofarmacologia que o só enquadramento em frias categorias de nomenclatura
científica é incapaz de responder às dúvidas suscitadas pelo uso brasileiro e,
em especial, urbano da ayahuasca. É preciso repensar a “ordem” de idéias
comumente aceita. Há conceitos intocados, mas não intocáveis que, de fato,
constituem-se, muito mais, em preconceitos, visto que, tantas vezes, são frutos
de idéias simplesmente herdadas e aceitas, sem jamais terem sido submetidas a
qualquer análise crítica. Um deles é o que se refere a alucinógeno e
alucinação. Ao se definir, por exemplo, que alucinação é percepção sem objeto,
penetra-se em campo conceptual de extrema dificuldade. Perceber é verbo transitivo
direto e pedirá sempre um objeto. A natureza deste objeto é impossível enfeixar
num único modelo nocional. Tive a oportunidade de dizer, durante a 43ª Reunião
Anual da SBPC, que há muitas histórias de percepção humana. O que, um dia, foi
definido como loucura, absurdo, herético ou fantasioso e, por isso, até
condenado à morte e queimado nas fogueiras, hoje integra, muitas vezes, o
quadro das ciências ou doutas formulações doutrinárias. Quem percebe sempre
estará apreendendo parte da realidade, num dos infinitos planos em que ela se
desdobra. A história das percepções é uma história de choques, exaltação e
condenação. Mais facilmente exaltamos aquilo que também nós somos capazes de
perceber. E somos pródigos em condenar, como loucos, aqueles que percebem o que
não atingimos.
Exemplo
veemente de paroxismo condenatório está simbolizado na “loucura da cruz” que,
entretanto, dividiu os tempos e revolucionou a história.
O que diríamos
nós, hoje, de alguém que, como São Francisco, abandonasse o conforto material e
passasse a vestir-se com saco de aniagem, a serviço dos pobres e doentes? Ou de
Bernadette Soubirous, a vidente de Lourdes, que segundo consta, cavava a lama
com as mãos, no local em que deveriam surgir as águas milagrosas? O
“diagnóstico” poderia ser algo menos que loucura?
Toda
percepção, portanto, tem objeto. A loucura é a incapacidade de conviver com os
diferentes níveis ou formas de perceber a desafiadora realidade.
Mircea Eliade
fala-nos das imagens, símbolos e mitos que, exatamente, são objeto de
experiências estáticas, transcendentes ou metafísicas. Os adjetivos serão
sempre insuficientes para definir tal experiência, que pode ser espontânea ou
provocada por inúmeras formas, registradas na história humana. Mas afirma
Eliade (22) que “as imagens, os símbolos e os mitos não são criações
irresponsáveis de psique, mas respondem a uma necessidade e preenchem uma
função: revelar as mais secretas “modalidades do ser”. E continua o acatado
escritor romeno, especialista na história das religiões, demonstrando a
falibilidade da expressão conceptual nesse campo: “se o espírito utiliza
imagens para captar a realidade profunda das coisas, é exatamente porque essa
realidade se manifesta de maneira contraditória, e conseqüentemente não poderia
ser expressada por conceitos” (23). “As imagens têm o poder e a missão de
mostrar o que permanece refratário ao conceito” (24).
Interessante
são as observações de Stanislav Grof, citado por Fritjof Capra(25) – “um erro
freqüente na prática psiquiátrica contemporânea, conclui Grof, é o de
diagnosticar alguém como psicótico com base no conteúdo de suas experiências.
Minhas observações convenceram-me de que a idéia do que é normal e do que é
patológico não deve se basear no conteúdo ou na natureza das experiências
pessoais incomuns, mas sim na maneira como o indivíduo consegue lidar com elas,
e no grau em que é capaz de integrar tais experiências em sua vida. A
integração harmoniosa das experiências transpessoais é decisiva para a saúde
mental.”
É, ainda,
Capra quem invoca Bateson ao afirmar que uma das suas principais metas no
estudo da epistemologia “era apontar a inadequação da lógica para descrever os
padrões biológicos” (26) e conclui dizendo: “como o modo transpessoal da
consciência em geral transcende o raciocínio lógico e a análise intelectual, é
extremamente difícil, se não impossível, descrevê-lo em linguagem concreta”
(27).
É
indispensável, portanto, deixar claro que conceitos sobre a alucinação,
delírio, ilusão, ansiedade e pânico na experiência estática “por mais nítidos
que pareçam, só possuem uma faixa limitada de aplicabilidade”, no pensamento de
Werner Heisenberg (28).
A falência
conceitual é plenamente compreensível em matéria de experiência extática, pela
mesma razão que leve à impossibilidade de definir o ser. O conceito é sempre
limitado por nossos modelos racionais e pelo circunscrito universo verbal a que
estamos jungidos. Ora, como o ser é o todo, é possível, apenas, falar dele,
jamais, entretanto, encerrar o todo no âmbito limitado das definições.
Assim, os
conceitos de alucinação e pânico estão longe de traduzir a realidade desse
estados espirituais. “Entrar em pânico” é expressão integrada à vida de todos
nós, assim como compõem o nosso universo as fantasias, os delírios e as
ilusões. Há, porém, um dos conhecidos “gigantes da alma” que penetra cada uma
dessas experiências – o medo. O pânico nada mais é que a sensação de medo, sem
saída. Mas a saída se aprende. Esse aprendizado - ou iniciação - é progresso. O
caminho está sempre diante de nós, com todos os medos. É preciso aprender a
vencê-los, pois eles são inevitáveis. Fugir deles é não progredir, é marcar
passo na estrada. O progresso acontece somente com a passagem e ela exige
ruptura.
Diz Eliade(29)
sobre a ruptura de níveis que “a estrutura dessas imagens não devem nos
surpreender. Todo simbolismo de transcendência é paradoxal e impossível de se
compreender no plano profano. O símbolo mais usado para expressar a ruptura dos
níveis e a penetração no “outro mundo”, no mundo supra-sensível (seja ele o reino
dos mortos ou dos deuses), é a “passagem difícil”, o “fio da navalha”.
Invoca Eliade,
para lembrar outras imagens que apresentam situações aparentemente sem saída, o
Evangelho de S. Mateus (7,14): “Estreita é a porta e apertado o caminho que
conduz a Vida, e como são poucos os que o encontram.”
Lembro aqui o
curta metragem - “Ô Xente Pois Não” - dirigido por Joaquim Assis, rodado em
Salgadinho, no agreste pernambucano, quando os camponeses interpretavam o seu
próprio universo. E um deles narra, em seu linguajar próprio, o último tema -
Um Sonho: (30)
“Vi um sonho e
já vi na vida. Porque tem sonho que a gente vê que num é... é que nem conversa.
Não tem conversa que a gente diz por brincadeira. Mas outros sonhos a gente vê
que é certeza mesmo. E esse sonho pra mim era certo. Era tão certo, que eu
entendi ele como um... um aviso que vinha. Do que eu ia passar na vida. Sempre,
sonhava, sempre, sempre. Depois nunca mais sonhei esse causo.
Quando eu mais
novo, eu sonhava muito andando por terras estranhas. Andando em terras
estranhas, entrava em casa grande que não tinha mais tamanho. Sim, uma casa
muito grande. Na viagem mesmo que eu ia, entrava naquela casa sem eu esperar.
Parecido que era noite. Daí por diante ficava lutando para o modo de sair.
Ficava assim me jogando sem saber da saída. Não sabia voltar. Mas que me
preocupava sempre, ia numa porta, nem outra, achava uma fechada... a outra...
lutava... ah... Mas sempre, por fim, sempre eu achava uma porta que dava pra eu
sair, que saía fora, nunca fiquei trancado. Eu achava uma saída. Atravessava.”
É preciso
aprender a “achar uma saída” e atravessar.
A chamada
alucinação é, por muitas vezes, o pretexto para a excomunhão dos que encontram
“a porta” e ousam a passagem.
E, no entanto,
anota Contenau,(31) “todas essas plantas cujo objetivo é aumentar o poder
metagnômico do sujeito são alucinatórias”, o que torna mais difícil o exame
desapaixonado da questão, considerada a carga emocional que envolve o termo
alucinação, cujo verdadeiro significado é, praticamente, impossível de
traduzir, conceitualmente.
A coleção de
termos jurídicos, farmacológicos, botânicos ou psiquiátricos e o enunciado de
formulas químicas são conceitos. E proclama a sabedoria que a vida transborda
os conceitos. Os setenta anos de prática ritual, com a adoção da ayahuasca no
Brasil, de forma ordeira e bem integrada com o meio social, são a própria vida.
E as fórmulas e conceitos foram feitos para a vida, não a vida para eles, num
paralelo com a questão bíblica do sábado.
Vale aqui a
lembrança do último período do livro de Michel Foucault(32) - A Arqueologia do
Saber: “o discurso não é a vida: o tempo dele não é o seu; nele, vocês não se
reconciliaram com a morte; é possível que vocês tenham matado Deus sob o peso
de tudo o que disseram; mas não pensem que farão, com tudo o que vocês dizem,
um homem que viverá mais que ele”.
Todos sabemos
que o homem buscou sempre meios que o levassem a, de forma crescente, superar
suas limitações à própria capacidade de conhecer. Não somente os “hippies” mas
até mesmo Tomás de Aquino, ao referir-se à alma (que ali, é importante notar,
tem o sentido de capacidade humana de conhecer), alude às circunstâncias que
permitem à mesma alma retrair-se do corpo, afastar-se da matéria e que facultam
surgir este conhecimento que lhe é próprio. Essas circunstâncias, afirma o
Professor João Manoel de Albuquerque Lins, da Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro:
“São, todas
elas, ocasiões em que as “ocupações sensíveis” deixam de avassalar o nosso
consciente, permitindo, assim, nos afastarmos do contato imediato com o mundo
externo que nos rodeia. Assim, no De Anima ele se refere aos “dormientibus”,
aos que dormem, ao sono portanto; e aos “alienatis a sensibus”, aos que não
estão usando dos sentidos, que estão por qualquer motivo, alheios aos sentidos;
na Suma Contra Gentiles, encontramos de novo, “dormientes”, os que dormem;
“syncopizantibus”, os que sofrem síncopes, desfalecimentos; e “extasim passis”,
os que têm êxtases; e no IV Sententiarum se refere ainda ao sono, “in
dormiendo”, quando do dormindo, e “in excessu mentis”, em êxtase, ou talvez
melhor, em transe.
As mesmas
circunstâncias, portanto, às quais a moderna parapsicologia reconhece como
aptíssimas para manifestação da ESP(33) ou Faculdade Psi-Gama.”(34)
(Separata da
Revista Verbum. Tomo XXIV - fasc. 2 - junho de 1967 - Universidade Católica -
Rio de Janeiro, pág. 221).
A referência a
Tomás de Aquino tem uma única e exclusiva razão: propor a reflexão sobre
estados de percepção a que o homem pode ser levado e que não parecem merecer a
definição de loucura ou insanidade mental, sendo, de resto, no mínimo temerário
classificar como ilusão, devaneio ou fantasia. É extremamente perversa a
condenação, sob o estigma de insanidade, das diferentes experiências
transpessoais.
Portanto, a
alusão a Tomás de Aquino, obviamente, não objetiva oferecer argumentação para
saber se deve ou não ser usada a ayahuasca mas, repita-se, tem como finalidade
demonstrar que tantas vezes, de forma ligeira, classificamos como alucinação a
utilização de faculdades “que todos possuímos, ao menos radicalmente”
(Albuquerque Lins, op. cit. pág. 211). Estes “conceitos” indiscutidos,
intocados, estratificados ao longo das décadas, dificultam o exame do problema,
principalmente quando esses mesmos “conceitos” se associam ao que Anthony
Richard Henman(35) identifica como - textualmente: “ necessidade de uma “guerra
total contra as drogas” que, por sua vez, se baseia na histeria proibicionista
que promove a Americam Drugs Enforcement
Administration nos meios de comunicação locais”.
De fato, as
perguntas do público em geral sobre o uso da ayahuasca refletem o
proibicionismo, instilado pela sediciosa “guerra” de que fala Henmen. Essas
perguntas encobrem, na realidade, um juízo prévio e condenatório. Gravitam em
torno de duas palavras: alucinógeno e culturas. A ayahuasca é alucinógeno? É
possível admitir o seu uso pelo homem da cidade, tendo em vista as diferentes
“culturas”, urbana e rural?
Anota o
professor honorário da Faculdade de Filosofia da Universidade Católica de Lyon,
Régis Jolivet, que na sociologia, cultura é “o conjunto das instituições e
tradições, dos costumes e representações coletivas, das crenças e sistemas de
valores que caracterizam determinada sociedade”(36).
Ora, como imaginar
a estanqueidade entre as “culturas” vigentes no “Seringal Céu do Mapiá”, em Rio
Branco, no Rio de Janeiro ou em Visconde de Mauá, quando várias vezes por ano
os “romeiros” saem de diversas regiões do Brasil e passam temporadas na selva
amazônica, no “Céu do Mapiá? E onde a tal impermeabilidade de “culturas”,
quando se constata que o “Padrinho Sebastião” hoje falecido) e toda sua
família, por seu turno, se demoravam longamente na comunidade “Céu do Mar”, em
São Conrado, na Cidade do Rio de Janeiro? É, ainda, importante, para o ponto
sob exame as “peregrinações” ao “Céu do Mapiá”.
A propósito do
decanto choque ou incompatibilidade de “culturas”, vale citar o que diz a
professora Regina Abreu (37):
“Resta, ainda,
acrescentar outras considerações à questão que apontamos anteriormente (fl. 14
deste Trabalho), relativa à conversão à Doutrina de segmentos da sociedade
urbano-industrial, fato que gera temores por parte de grupos religiosos,
autoridades civis e militares e setores da sociedade civil. A adoção da
Doutrina Santo Daime nas cidades tem, evidentemente, características peculiares
à vida urbana. Não encontraremos, nela, obviamente, os trabalhos próprios do
meio rural, como a caça e a grande agricultura. Mas a conversão à Doutrina pode
levar os convertidos a práticas rituais e de vida que guardem as
características básicas das comunidades religiosas rurais. Há um projeto
semelhante nos dois casos. Em ambas, como diz o antropólogo Dumont, já citado
anteriormente, “a ênfase é colocada sobre a sociedade em seu conjunto, como
homem coletivo, o ideal se define pela organização da sociedade tendo em vista
seus fins (e não, os ganhos pessoais); trata-se antes de tudo de ordem, de
hierarquia; cada homem particular deve, pelo seu lado, contribuir para a ordem
global, e a justiça consiste em proporcionar as funções sociais com relação ao
conjunto” (cf. Dumont, Louis, Homo Hierarchicus - Lê Systeme dês Castes et Sés
Implications, Paris, Tel Gallimard, 1966, p.23). Assim, nas cidades, a
comunidade se estrutura de tal sorte a suprir, também, suas necessidades
espirituais (adotam a “doutrina”, como prática no meio rural) e materiais.
Essas necessidades materiais são supridas através dos mais variadas lavores
encontrados na sociedade urbana (profissionais liberais, servidores públicos e
da iniciativa privada, políticos, professores, intelectuais, etc.).
De tudo
resulta que estas comunidades, do campo ou da cidade, que adotam a “Doutrina do
Santo Daime”, podem parecer, aos olhos de muitos, grupamentos exóticos, mas a
convivência com esta diversidade somente poderá ser enriquecedora para os
indivíduos e para a sociedade como o todo”.
Melhor
arremate para o tema não poderia haver que o texto de Claude Lévi -
Strauss(38):
“Nenhuma
cultura está só; ela é sempre capaz de coligações com outras culturas, e é isto
que lhe permite edificar séries cumulativas. A probabilidade de que, entre
essas séries, surja uma mais longa depende naturalmente da extensão, da duração
e da variabilidade do sistema de coligação. (...) A única fatalidade, a única
tara que pode afligir um grupo humano e impedi-lo de realizar plenamente sua
natureza, é a de ser só.”
Se ainda hoje,
a proposta de não tratar a questão da ayahuasca no âmbito do direito penal, de
não indexá-la entre as drogas proscritas, é motivo de tanta polêmica,
imagine-se há onze anos atrás. Presentemente, porém, o transcurso de mais de
uma década, sem a formação de tráfico ou cartéis, sem a disseminação de ondas
de violência, nascidas do abuso do chá, não obstante o afastamento da repressão
policial, constitui potentíssimo argumento a favor da orientação adotada pelo
CONFEN.
O tratamento
sereno da questão, por outro lado, permitiu a liberdade da pesquisa científica.
Temos, agora, o primeiro resultado de investigação biomédica em cooperação
multinacional, publicada, no corrente ano de 1996, no órgão oficial da
disciplina de psiquiatria e psicopatologia da Universidade do Estado do Rio de
janeiro - “Informação Psiquiátrica” - com o título de “Farmacologia Humana da
Hoasca, planta alucinógena usada em contexto ritual no Brasil; I. Efeitos
psicológicos”. (39) Participaram dessa investigação, realizada durante o verão
de 1993, pesquisadores de UCLA Medical Center - USA, da Universidade de Kuopio,
Finlândia, do Centro de Estudos Médicos, São Paulo, da Escola Paulista de
Medicina e da universidade de Novo México. Embora não seja viável, no âmbito do
presente trabalho, a análise completa de tão valiosa contribuição que nasceu da
iniciativa da UDV por considerar, acertadamente, como se lê na revista da UERJ,
“que conclusões de um estudo científico, objetivo e isento poderiam ter um
valor de proteção no futuro, se mudasse a direção política no Brasil”(40).
A investigação
trabalhou com quinze pessoas filiadas, há quinze anos, a entidade usuária da ayahuasca,
e com mais quinze outras, como grupo controle e sem história anterior de
ingestão do chá. Diz a pesquisa: “a presente análise dos dados são, porém,
indicações de que o consumo por longo tempo da hoasca, no contexto cerimonial
estruturado da UDV, não parece exercer um efeito tóxico e de deterioração nas
funções neuropsicológicas”(41). No resumo da pesquisa está dito: “não houve
evidência de deterioração cognitiva ou de personalidade nos usuários da hoasca.
De fato a avaliação global revelou status funcional elevado, atribuído pelos
indivíduos ao uso ritual do seu sacramento psicoativo, hoasca”(42).
Por último, o
ilustre professor da UERJ e integrante do grupo de pesquisa, Dr. Osvaldo Luiz
Saide, lembra que o uso da ayahuasca é elemento constitutivo do ritual de
religiões - a UDV e o Santo Daime - autenticamente nacionais, “até no seu
sincretismo (que é marca de nossa cultura, como diria Darci Ribeiro)”(43).
Afirmo, com
serena convicção, que a procura de uma forma peculiar de percepção, empreendida
pelos usuários da ayahuasca, em suas “sessões” ou “trabalhos”, não pode ser
definida, irrefletidamente, como alucinação, se tomado o termo na acepção de
desvario ou insanidade mental. Houve sim, a constatação de realidade
rigorosamente comum a todos eles: a consciência de expandir as virtualidades
individuais e comunitárias, em busca do sagrado e do autoconhecimento.
Children of a future age,
Reading this indignant page,
Know that in a former time
A path to god was thought a crime.
(adaptado de William Blake, apud “Religion and
Psychoactive Sacraments: A bibliographic Guide”, 1995, de Thomas B. Roberts e
Paula Jo Hruby).
Os trabalhos
do Autor reunidos nesse texto foram organizados por seu filho Filipe Gialluisi
da Silva Sá.
Notas:
(1) “Lá Cuestión de la Realidad de la Amazônia”.
Revista
“Amazônia Peruana”. AAAp - Vol. VI - nº 11 pág. 92 - Lima / Peru
(2) Resposta, de 20/03/1992, a consulta sobre o
parecer do Dr. Alberto Furtado Rahde
(3) Trabalho da
Professora Regina Abreu - Assessora do Grupo de Trabalho do CONFEN.
(4) Vera Fróes -
“Hitória do Povo juramidam” (A Cultura do Santo Daime) - Prêmio Suframa de
História / 83 págs. 41/42
(5) Vera Fróes -
op. cit. pág. 43/44
(6) Vera Fróes -
op. cit. pág. 120/121
(7) Denise
Ferreira da Silva - “Comunicações do ISER” - Ano 5 - nº 1 - págs. 70/71
(8) “União do
Vegetal - Hoasca - Fundamentos e Objetivos” - pág. 36
(9) Manchete, nº 1
1941 - de 1º/7/1989, pág. 46
(10)
Resposta a consulta - cit.
(11)
“Os Sacramentos da Vida e a Vida dos Sacramentos” - Vozes -
2º Ed. - pág. 100
(12)
Idem - pág. 75
(13)
op. cit. pág. 34
(14)
Revista da Associação Brasileira de Psiquiatria Vol. 7 - nº
26 / pág. 100
(15)
Relatório Final - pág. 30
(16)
“A literatura Alucinada “Atheneu Cultura”” - pág. 71
(17)
Relatório Final - pág. 22 - item 29
(18)
Jornal do Brasil - 13-01-1991
(19)
Anais do 45º Congresso Internacional de Americanistas -
Bogotá - 1985 - fl.9
(20)
Fritjof Capra - “O Tão da Física” - Cultrix - pág. 50
(21)
Resposta, de 20/03/1992, a consulta sobre o parecer do Dr.
Alberto Furtado Rahde
(22)
M. Eliade - Imagens e Símbolos - Martins Fontes - pág. 8
(23)
Idem - pág. 11
(24)
Ibidem - pág. 16
(25)
F. Capra - Sabedoria incomum - Cultrix - pág. 100
(26)
F. Capra - op. cit. pág. 66
(27)
Idem - pág. 83
(28)
Apud. F. Capra - in O TAO da Física, cit. pág. 30
(29)
M. Eliade - op. cit. pág. 80
(30)
“O Xente, Pois Não” - FASE - Federação de Órgãos para
Assistência Social e Educacional - RJ
(31)
G. Contenau - “La Divination Chez
Lês Assiriens et Les Babyloniens” - Payot. Paris - 1940
(32)
M. Foucault - Arqueologia do Saber - Vozes - pág. 256
(33)
(“ESP” - percepção extra-sensorial)
(34)
Separata da Revista Verbum, tomo XXIV, fasc. 2, junho de
1967, Universidade Católica- RJ, pág. 221
(35)
“América Indígena” - Instituto Indigenista Interamericano”,
Vol XLVI, Jan/mar/1986 - pág. 221
(36)
Jolivet - In. Vocabulário de Filosofia - 1975 - AGIR - pág.
60
(37)
Trabalho de assessoria ao GT do CONFEN, cit. pág. 16/17
(38)
Claude Lévi Strauss, em “Raça e História”. Raça e Ciência I
- ED. Perspectiva - SP. 1970, págs. 262/263
(39)
“Informação Psiquiátrica”, publicação trimestral, vol. 15,
nº 2, págs. 39/45
(40)
ob. cit. pág. 40
(41)
ob. cit. pág. 45
(42)
ob. cit. pág. 39
(43)
ob. cit. editorial