Revista Pesquisa da Fapesp - Edição 123 - Maio 2006

A batalha dos vegetais

Religiões da ayahuasca podem indicar caminho para uma boa guerra contra as drogas

Carlos Haag

George W. Bush pode se gabar de ser o homem mais poderoso do globo, um "guerreiro" invencível, mas perdeu, e feio, a "batalha dos vegetais". Por decisão unânime, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, em fevereiro, que o presidente não pode impedir a filial ianque da União do Vegetal (UDV) de usar, em seus rituais religiosos, o chá de ayahuasca (ou huasca ou santo-daime), visto pelo presidente norte-americano como "um alucinógeno que altera o funcionamento da mente e causa danos irreparáveis nos esforços de combate ao tráfico de narcóticos transnacional". No mês passado, os cultos ayahuasqueiros conseguiram outra vitória: durante o Seminário Ayahuasca, promovido pelo Conselho Nacional Antidrogas, o Conad, foi apresentado um relatório recente da ONU que exclui o DMT, princípio ativo do chá, da lista de psicoativos proibidos pelo Tratado Internacional de Drogas, de 1971. Mais: em 2007, o Brasil está convidado para apresentar na sede da organização, em Nova York, a sua forma de trabalhar com a ayahuasca.

"O aparecimento de religiões que fazem do uso de uma substância psicoativa o ponto central de seus conjuntos rituais traz à tona novos modos de pensar e de tratar a questão do consumo de substâncias alteradoras da percepção no mundo moderno, sobretudo daquelas classificadas como drogas ilícitas", avalia a antropóloga Sandra Lucia Goulart, pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip) e autora da tese de doutorado Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca, defendida na Unicamp. Ayahuasca é o termo quíchua (significando algo como cipó dos mortos ou dos espíritos) dado à bebida preparada com a infusão de um cipó e as folhas de um arbusto. Seu uso por índios sul-americanos da região amazônica é pré-colombiano e age diretamente nos neurorreceptores, provocando uma sensação descrita pelo cantor Sting como "conseguir falar com Deus, uma das experiências mais extraordinárias de minha vida". O poeta beat Allen Ginsberg chegou a ir até Lima, no Peru, para provar a bebida, aconselhado pelo amigo junkie William Burroughs. "Senti-me como o filho do Senhor, como se eu mesmo fosse o Senhor que tivesse voltado para casa e aberto os portões do paraíso ancestral", escreveu. O que Bush chama de droga os pesquisadores, tão entusiasmados como Ginsberg, preferiram batizar de "plantas de poder" ou "enteógenos", deixando claro, no uso da palavra grega theo (deus), que reconheciam o papel que muitas sociedades e religiões deram e dão ao preparado: uma forma de facilitar a comunicação entre as esferas humana e divina, uma experiência transcendental, curativa, que remete diretamente às culturas xamânicas.

"Ainda que exista uma tradição de consumo da ayahuasca em vários países da América do Sul, apenas no Brasil se desenvolveram religiões de populações não-indígenas que usam esta bebida. Religiões que usam esta beberagem reelaborando antigas tradições dos sistemas locais a partir de uma leitura influenciada pelo cristianismo", observa a antropóloga da Unicamp Beatriz Labate. Foi com o ciclo da borracha, que atraiu grandes ondas migratórias para a Amazônia, que "brancos" entraram em contato com as práticas terapêuticas e as crenças religiosas dos nativos, baseadas no uso da ayahuasca. Iniciado no uso da bebida por um mestiço peruano, o seringueiro maranhense Raimundo Irineu começou o seu movimento, apelidado de Santo Daime (já que, nas rezas, sempre se pede alguma coisa), em 1930, em Rio Branco, capital do então território do Acre. Mestre Irineu, como ficou conhecido, reuniu em torno de si a camada mais pobre da região e exerceu sobre eles uma influência positiva e de segurança. "Os rituais que ele presidia estavam dentro do espectro da tradição xamânica do uso de enteógenos, que eram utilizados não de forma recreacional, mas para estabelecer contato com o sagrado. Mais do que uma válvula de escape da miséria cotidiana, o daime era uma forma de evocar e validar valores culturais", explica o antropólogo da Universidade Federal da Bahia Edward MacRae. "De início, a nova religião ajudava migrantes da floresta a se adaptar ao novo ambiente urbano incipiente e o uso da bebida se dava num contexto ritual, dentro de uma ética conservadora cujo objetivo mais importante era o desenvolvimento de comunidades em que o indivíduo podia se integrar com seu hábitat físico e social", analisa o pesquisador.