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Ele era de um jeito que, se a gente cometesse um erro, até para nos dizer alguma coisa ele tinha cuidado. Inclusive, comigo aconteceu de fazer uma coisa que não estava bem certa e ele me dar toda razão. Depois ele me disse:

 

- Você errou, quero que entenda.

 

Aí ele explicava o motivo.

 

Todo chefe tem muita autoridade. Mas ele não usava essa autoridade com ninguém, nem com homem, nem com criança. Era amigo de todos. Eu nunca vi ele estourar e eu vivi na casa dele durante anos.

 

Houve época que eram de 25 a 30 pessoas todos os dias, na casa do Mestre. Nos fins de semana piorava, era área de lazer. O pessoal não cansava de sair de casa com a família, para ir lá, naquela festa, naquele amor. Quando tinha festa, ele gostava de ver o pessoal animado, de ver o pessoal brincar. Ele não era só devoto, não queria ser só santo, ele queria que a pessoa se sentisse bem, como ela gostava de ser.

 

Se batia um violão, ele queria que a pessoa fosse tocar para ele escutar. Qualquer tipo de música. Não era só hino não. Ele fazia festa para todas as crianças. O pessoal dava doce para ele (bombom, essas coisas da cidade) e ele ficava com os bolsos cheinhos. Quando vinha dia de domingo, ele se sentava e cada menino que vinha chegando, ele dava os bombons. Ah! Ele era amigo da criançada toda, todo mundo queria ir até lá. Eu sempre digo e admiro; no tempo do meu tio até os cachorros que chegavam, lá ficavam. Eu cansei de ver cachorro chegar com o dono e na hora que o dono queria ir embora o cachorro não queria ir não.

 

- Deixa o cachorro aí, eu trato dele – dizia o tio. Ele era um ímã para atrair as pessoas.

Uma vez, tive uns pensamentos duvidosos em relação a ele. Quando nós dois tomamos o Daime, o Mestre disse:

 

- Você anda censurando os meus atos por aí?

 

Na hora em que ele disse isso eu lembrei de tudo quanto eu tinha pensado.

 

Ele disse:

 

- Olha, meu filho, do jeito que eu gosto de você, que é meu sangue, eu gosto do mundo inteiro, todos iguais.

Quando ele disse "todos iguais", nós estávamos em cima de um palanque, mirando muito. Havia uma multidão e os invisíveis passaram a régua sobre a cabeça das pessoas nivelando a todos.

 

- O senhor vai me perdoar, que eu nunca mais faço desses pensamentos com o senhor.

 

- Olha, eu estou trabalhando para tudo aqui ficar assim...

 

Então as pessoas se transformaram em ovelhas, tudo branquinho, tudo mansinho. Quando uma cabeça se mexia, todos se mexiam também. Todos humildes, todos cordeirinhos.

Na manhã seguinte, ele disse:

 

- Que tal?

 

- Olha, mais uma vez o senhor vai me perdoar, pois eu não sabia certo.

 

- É isso. Você está duvidando de mim...

 

Eu admiro aquele amor, aquela força, aquele poder, aquela dedicação. Pai de todo mundo.


 

Era no tempo que o Mestre foi morar novamente numa antiga colocação de seringa. Lá nessa colocação, todo mundo que ia morar lá morria. Quando morreu uns quatro ou cinco por lá, ele decidiu: “Eu quero morar lá nesse lugar eu quero tomar conta de lá.” Ele foi pra lá. Foi no tempo que ele morava com a dona Francisca. Quando ele arriou a bagagem, disse pra ela: “Olha, nao beba água. Espera aí, vamos ver o que tem aí.” Aí, saiu procurando a vertente. Aí, quando ele chegou na vertente, ele encontrou uma planta chamada “capança” encostada na água. Eles tomavam a água com o veneno da capança. Ela é um veneno muito forte, ela é igual ao assacuê, outros venenos violentos que tem por lá. Com uma semana ou duas, as pessoas morriam. Ele tirou a capança de dentro da vertente, aí ninguém mais morreu naqula colocação. O ano que ele viveu lá, todos viveram com saúde.


Quando chegava um doente pedindo daime para se curar, o Mestre levava na casa dele e dava um copo de daime com fumaça de tabaco,  ele pegava um tabaco que ele mesmo produzia, ou charuto, pois ele ganhava muitos de presente, e soprava a fumaça dentro do copo... e aí tampava com a mão um pouco, dava uma baforadinha asssim de longe... fuuuu, fazia uma pequena concentração... destampava e dava para o doente tomar. Era chamado o daime curado do Mestre. Quando a gente tava mirando muito, ele tirava a miração. Ele acendia um charuto e soprava fumaça na cabeça e passava a mão e tirava logo a miração e passava a agonia.


Em 1957, ele voltou ao Maranhão para visitar a família. Ele chegou aqui, não encontrou a família. Estava toda esfarelada. Para a gente encontrar um, era o maior problema. Era um pra um canto, outro pra outro. Tinha gente no Acre (Domingas, Francisca e Benedito), Maranhão, Rio de Janeiro, Roraima, tá tudo esfarelado, tudo é Brasil. Ele chegou aqui na esperança de ainda encontrar viva a sua mãe, mas em São Luís, antes mesmo de chegar a São Vicente, soube que isso não era mais possível. Procurou onde estavam morando seus parentes. Ele encontrou poucos parentes morando em São Vicente. Na época eu morava na Penalva. Fiquei sabendo que ele estava chamando os que quisessem ir com ele. Arrumei minhas malas e fui encontrá-lo em São Vicente de Férrer.


Quase todos já tinham comprado as coisas antes dele viajar. Ele comprou um monte de coisa, era sela para cavalo, era coisa de animal, rede, ferramentas, muita coisa que dava quase pra encher um caminhão. Levou também frutas da região, muita coisa, não foi só babaçu não. Nós saímos lá de São Jerônimo, passamos em São Vicente, depois passamos em São João Batista e fomos embarcar lá no Cajapió, num lugar que se chamava Raposa. Passamos dois ou três dias esperando o barco, só comendo sardinha fria com farinha, fazendo farofa de farinha d’água.


Quando o barco chegou embarcamos e viajamos para São Luís. Inclusive o nosso guia era um parente dele, era o Zé de Paula que é irmão da Rita Serra. Severina vinha todo o tempo com a gente até São Luís.Quando chegou em São Luís, desembarcamos e fomos pra casa de um tio nosso que se chamava Raimundo Barbadinho. Passamos uns dias lá com o Raimundo, não sei direito quantos dias. Mas foram muitos, até que ele conseguiu a passagem pra viajar pra Belém. Pegamos o barco no Porto da Praia Grande, era uma sexta-feira, seis horas da tarde do dia 18 de janeiro de 1958. Embarcamos num barco chamado Zé Lobato que ia pra Belém. Na viagem passamos pela Ilha de Marajó. Nós chegamos lá no dia de São Sebastião, era domingo de manhã bem cedinho do dia 20. O Fabiano, irmão do seu Zé das Neves, foi nos pegar no porto. Ele morava perto da igreja de Nossa Senhora de Nazaré. Ficamos em Belém uns dias na casa do Fabiano. Meu tio (Mestre Irineu) se comunicou com o pessoal do governo do Acre. Aguardamos o pessoal mandar as passagens pra nós. Ele sempre falava no Coronel Fontenelle de Castro (Secretário Geral na época). Embarcamos num outro barco chamado João Gonçalo.


Chegamos ao Acre no dia 14 de manhã cedinho. Desembarcamos no porto de Rio Branco. Ainda não tinha ponte, era um lugarzinho muito atrasado. Inclusive nós saltamos no porto que se chama Porto da Tamarina, é perto do mercado. Chegamos, estava aquela fileira de gente esperando o Mestre desembarcar. Aí, subimos, não chegava carro lá. Aí levaram a bagagem até o meio do caminho, na casa de seu Guilherme Gomes. De lá carregou em um carro de boi lá pra casa do Mestre. Quando chegamos lá, andamos umas duas horas de pé, era um atoleiro doido. Era inverno, no mês de fevereiro. O pessoal já estava esperando ele. Quando entramos na casa do Mestre, fomos logo lá arrumando as coisas.


Foi a primeira vez que eu ouvi cantar um hino. Foi cantado o hino “Centenário” eu nem sabia o que era. Fiquei até desconfiado. Quando nós entramos lá dentro do salão dele, a Percília chamou o pessoal que ficaram de um lado e ele bem na frente. Aí, cantaram, foi muito bonito, foram dois dias de festa de banquete. Depois fizeram uma sessão de Concentração. Foi a primeira vez que eu vi o pessoal tomando daime.


Ele dizia que de tudo existe. Agora ele tratava de caboclos, de pessoas que começavam a pinotear. As pessoas chegavam viradas, mas só eram valentes até chegar lá. Quando chegava lá, a gente amansava. Teve uma vez que, um dia de manhã, chegou uma mulherzinha baixa, que chegou lá quebrando tudo. Tinha quatro lutando com ela e não aguentavam. Ela estava atacada, aí, uns homens chegaram no portão com ela, eles pelejaram, pelejaram. Aí ele mandou eu dar uma ajuda. Eu já estava com a mão nela, bem na hora do trabalho. Eu tive que segurar ela pelo ombro, que ela era baixa, e não dava pra segurar, ela ficava batendo o pé no chão. A comadre Percília rezando pra fazer um trabalho de cura. Não era preciso uma sala cheia. Ela pinoteando e eu segurando. Eu segurei até o final, quando terminou, ela dormiu em meu braço. Quando ela dormiu, o Mestre mandou colocar na rede. Tinha uma rede e tinha um quarto pra isso. Ele chamou Dona Percília e mandou tomar conta dela. Esses trabalhos era só ele e a Percília: “A senhora não fale nada quando ela acordar, mande chamar o marido dela pra vir buscar.”


Quando foi umas duas horas, o marido levantou. A primeira coisa que ele pediu foi pra ver os filhos dela. A Percília tranquilizou ela, dizendo que o marido já vinha buscá-la. Quando o marido chegou, que ela viu, chamou ele, botou na frente. Até hoje aonde eu tenho conhecimento nunca mais ela voltou.


Uma vez veio uma de Xapuri. Não tinha quem aguentasse, era um quebra quebra. Mais de dez homens querendo segurar. Na hora que ela chegou lá, era durante um trabalho, um hinário grande. Aí o Mestre disse: “Segura essa mulher aí.” Só dava a mim pra segurar. Quem é que ia segurar? Ele não mandava outro segurar. Chegou uma hora que ela caiu nos braços e já estava dormindo. Aí o pessoal começou a rezar e ela ficou boa e nunca mais apareceu no trabalho. O Mestre não cobrava por isso, ele fazia o trabalho sem reparar a quem.


Com delicadeza Mestre Irineu respondeu uma vez, quando alguém sugeriu a adoção de outras práticas: "Olhe, não leve a mal, mas aqui na minha casa não se enfeita com flores dos outros, não. Aqui já tem o enfeite da casa." O Mestre dizia assim: "Qualquer coisa que for contra a lei do meu país, eu não aceito dentro da minha casa." Eu nem sabia de Daime e, dias depois de chegar a Rio Branco, recém chegado do Maranhão, vi muita gente entrando em casa: – Todos foram se sentando nos tocos e bancos, daqui a pouco titio trouxe um garrafão e foi dando uma bebida para todo mundo. Eu fiquei só olhando… doente de curiosidade… até uma hora em que ele me fitou em silêncio por um tempo e, já que eu nada disse, voltou–se e continuou a dar do garrafão para as outras pessoas. Aí todo mundo foi se aquietando, eu fiquei no meu canto sem entender nada durante o silêncio compridíssimo que fizeram e no dia seguinte perguntei–lhe o que era aquilo. – É Daime. – Daime!? O que é isso? E porque o senhor não me deu um pouco? – Porque você não pediu. Viu–me ali dando para todo mundo, mas não pediu, e eu não devo oferecer…

Como o Mestre fazia quando alguém queria se fardar?
– Ele explicava que era uma responsabilidade. "Para quê a pessoa queria?", porque até para tomar daime o Mestre dizia: "Para que tu queres tomar daime, tu sabes o que é daime?" Até "assustava a pessoa". Ele dizia: "olhe, tu vais te meter num negócio muito sério e é isso que tu queres? É muita responsabilidade". É como se fardar, não é qualquer pessoa. Às vezes ele dizia: "Dê um tempo, tu tens que conhecer o serviço melhor, saber se vale a pena". Ele não gostava de nada forçado, de jeito nenhum. Tinha de ser por amor… Dizer "você tem de se fardar, para ficar aqui", negativo!, nunca vi ele fazer isso. Teve gente que acho que viveu lá a vida todinha e nunca se fardou. Às vezes, tinha alguém que ele achava que podia dar alguma coisa e ele dizia: "Olhe, tu estás bom de se fardar", mas tinha vezes que era melhor ficar lá sem farda, mesmo".